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domingo 2 de abril de 2023 às 10:01h

Como a Argentina saiu da hiperinflação há 30 anos e qual a viabilidade de se repetir a fórmula

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Viver com inflação alta não é novidade para os argentinos.

No momento, o país está atravessando uma onda histórica de aumentos de preços — mais de 100%. Mas não é a primeira vez que a Argentina, dona da terceira maior economia da América Latina, supera os três dígitos de inflação.

Há 30 anos, a situação era muito pior. O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) chegou a registrar uma taxa anual de 3.079% em 1989 e 2.314% em 1990. O país enfrentava uma grave crise financeira e altos níveis de pobreza entre a sua população.

Mas, cinco anos depois, no segundo mandato do presidente Carlos Menem, o IPC caiu para 0%.

O que fez a Argentina naquele momento para combater a hiperinflação? Essa mesma solução teria bons resultados hoje?

A Lei da Convertibilidade

No início da década de 1990, a espiral inflacionária que atingia a Argentina parecia incontrolável.

Para enfrentar a crise financeira, o então ministro da Economia de Menem, Domingo Cavallo, realizou profundas mudanças na organização econômica do país, incluindo a famosa Lei da Convertibilidade.

A medida começou a valer em abril de 1991, depois de ser aprovada pelo Parlamento argentino. Ela estabeleceu a paridade fixa entre o peso argentino e o dólar norte-americano. Ou seja, um peso passou a valer um dólar.

Os argentinos chamaram popularmente esse período de “uno a uno” (um por um).

Para possibilitar a medida, o Banco Central da Argentina tornou-se virtualmente um “comitê monetário”. Sua função era de garantir cada peso em circulação com um dólar americano.

Com isso, a Argentina conseguiu, em pouco tempo, reduzir drasticamente a inflação e estabilizar a economia. O que se seguiu foi um longo período de estabilidade dos preços.

“[A convertibilidade] colaborou para que o país estabilizasse seu déficit — embora não totalmente —, recebesse investimentos e aumentasse sua produtividade”, explica o economista e acadêmico argentino Eduardo Levy-Yeyati à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Levy acrescenta que essa política econômica foi diretamente beneficiada pelo plano Brady, que reestruturou a dívida contraída pelos países em desenvolvimento — incluindo Argentina, Brasil, Equador, México e Venezuela — junto aos bancos comerciais norte-americanos.

E ela também foi beneficiada por outras reformas lideradas pelo ministro Cavallo, como a abertura comercial e a privatização de empresas públicas, e pelo ciclo global do dólar.

É preciso relembrar que, nessa época (início dos anos 1990), muitos países da América Latina estavam criando programas de estabilização da economia depois da crise da dívida dos anos 1980, considerada um dos “episódios econômicos mais traumáticos” para a região. A crise trouxe fortes consequências sociais, incluindo um aumento considerável da pobreza.

Não foi por acaso que aquela época foi chamada de “a década perdida”.

Mas, segundo a economista e diretora da consultoria Eco Go, Marina Dal Poggetto, a Argentina foi o único país latino-americano a sobreviver àquele caos utilizando o dólar como “âncora rígida”, com a paridade cambial.

Esta, para ela, é uma das principais razões pelas quais a convertibilidade acabou sendo um fracasso, provocando um dos maiores colapsos econômicos, políticos e sociais da história da Argentina.

Mas por que fracassou?

“Passamos de uma economia fechada, altamente inflacionada e muito protegida, para uma economia aberta e com inflação muito baixa, mas que começou a ter problemas a partir de 1996”, explica Dal Poggetto.

O que aconteceu então com o modelo de convertibilidade que parecia tão bem sucedido, mas que começou, pouco a pouco, a mostrar suas primeiras fissuras? As razões do colapso são várias, mas os economistas concordam que os “choques externos” tiveram papel fundamental — entre eles, o vigor do dólar.

“O vigor do dólar, gerado pelo aumento da taxa de juros nos Estados Unidos, acabou provocando uma crise em países emergentes, como a Argentina”, destaca Dal Poggetto.

Ao mesmo tempo, a crise asiática, que se estendeu rapidamente para outras regiões do mundo, e a forte desvalorização do rublo (a moeda nacional da Rússia), também trouxeram fortes impactos ao sistema econômico do país sul-americano.

Mas o golpe mais importante veio do Brasil, em 1999. Depois de uma forte crise marcada pela fuga de capitais e pela queda da atividade econômica, o país decidiu desvalorizar o real em relação ao dólar.

A Argentina então viu suas exportações para o Brasil caírem, o que prejudicou profundamente diversos setores, como o de automóveis, tecidos, laticínios e calçados.

“A desvalorização do real em 1999 foi a pá de cal da convertibilidade”, segundo Dal Poggetto. “A Argentina deveria ter também desvalorizado sua moeda naquele mesmo ano, como fez o Brasil, mas não conseguiu devido ao regime rígido que estava em vigor.”

Nos dois anos seguintes, a crise financeira da Argentina foi se aprofundando cada vez mais. Os argentinos precisaram enfrentar uma forte recessão, com aumento recorde do desemprego. Três em cada 10 trabalhadores argentinos ficaram desempregados.

O ‘corralito’

Em 2001, a demanda por dólares havia superado enormemente a capacidade da Argentina de gerar divisas.

Com a economia paralisada e sua moeda local, o peso, caro e pouco competitivo, a Argentina dependia cada vez mais do financiamento externo. O país chegou a ter 97% da sua dívida externa em dólares.

Preocupados com a situação econômica asfixiante, muitos argentinos começaram a desconfiar da solidez do sistema e passaram a enviar seus dólares para contas no exterior, especialmente para o vizinho Uruguai.

Com as reservas do Banco Central em queda, o governo do presidente Fernando de la Rúa pediu ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI), negociando a reestruturação da sua dívida. Mas a crescente fuga de capitais e o descontrole econômico fizeram com que o FMI decidisse suspender seus desembolsos poucos meses depois, provocando uma corrida ainda maior aos bancos argentinos.

Neste contexto, De la Rúa assinou, em 3 de dezembro de 2001, o decreto 1570. Ele foi idealizado pelo “pai da convertibilidade”, Domingo Cavallo, para tentar estancar a sangria de dólares sofrida pelo país.

Rapidamente apelidada de “corralito”, a medida impôs restrições à retirada de depósitos bancários, asfixiando ainda mais a população, paralisando o comércio e deixando a enorme economia informal do país sem condições de sobreviver.

A história que se seguiu é bem conhecida. Ocorreram saques e protestos da sociedade, que terminaram provocando a renúncia (e a fuga de helicóptero) do presidente De la Rúa. Estava aberta uma crise política e institucional sem precedentes no país.

Frente a essa complexa situação, no início de 2002, a paridade entre o dólar e o peso foi extinta, bem como a “pesificação” dos depósitos em dólares. A medida causou uma forte desvalorização da moeda local, que fez com que a pobreza disparasse, chegando a atingir dois em cada três argentinos.

O país também deixou de pagar sua dívida externa, declarando a maior moratória da história na época: US$ 144 bilhões (cerca de R$ 733 bilhões).

Seria possível um modelo similar nos dias de hoje?

O fim abrupto do modelo da convertibilidade faz com que seja difícil pensar nele como uma solução viável para a atual crise inflacionária que enfrenta a Argentina. Mas algumas pessoas trouxeram de volta essa discussão.

Uma dessas pessoas é o economista Javier Milei, deputado da direita libertária que aspira à presidência do país.

Milei afirmou que a paridade cambial foi um dos processos mais bem sucedidos para controlar as variáveis macroeconômicas e, por isso, seria fundamental desenvolver um modelo similar para alterar o rumo atual da economia argentina.

“A convertibilidade foi introduzida em 1º de abril de 1991 e, em janeiro de 1993, éramos o país com a menor inflação do mundo”, afirma Milei. “Proponho a livre concorrência entre as moedas e a reforma do sistema financeiro. Assim, o mais provável é que os argentinos escolham o dólar e, aí, você dolariza [a economia].”

Mas os economistas consultados pela BBC News Mundo consideram que esta opção é pouco viável.

“O regime cambial não resolve o problema”, segundo Marina Dal Poggetto. “Se você não tiver a correção das contas fiscais e o ordenamento dos preços relativos, não irá impedir a inflação. Então, você precisa de um programa de estabilização.”

“Qual é o regime monetário cambial ideal? Para mim, não é uma espécie de câmbio fixo, não é o comitê monetário. A convertibilidade acabou mal porque o choque durou tanto tempo que não sobreviveu”, afirma Dal Poggetto.

Já para Eduardo Levy-Yeyati, em termos práticos, uma nova lei de convertibilidade “só seria possível se fossem acumuladas reservas internacionais com antecedência”.

“Se houver uma corrida, como a que vemos hoje com o Credit Suisse, não haveria forma de impedi-la, a não ser que o governo ou os bancos mantivessem reservas líquidas. Nos anos 90, tanto o Banco Central da Argentina quanto os bancos comerciais mantinham fundos de liquidez em dólares”, explica Levy.

Em termos econômicos, Levy-Yeyati afirma que “a convertibilidade comprovou que serve para estabilizar, mas não substitui a necessidade de equilíbrio fiscal e de políticas de desenvolvimento”.

“Pensar nela hoje como um atalho para a estabilidade me parece ingênuo”, conclui o economista.

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