Após ser associada ao bolsonarismo no governo passado, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) enfrenta uma nova disputa interna por poder com contornos políticos. De um lado, uma autointitulada “ala progressista” conta com o apoio de parte da bancada do PT na Câmara e critica a gestão do atual diretor, Antônio Fernando Oliveira, por suposta perseguição a adversários. Do outro, o grupo de Oliveira diz que é vítima de dossiês e espionagem por resistir à pressão de setores petistas para nomear mais quadros partidários nas chefias do órgão.
Com o debate em curso sobre a politização, a PRF mantém hoje cinco superintendentes filiados ao PT, de acordo com levantamento do GLOBO: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo. Outros dois superintendentes vinculados ao partido (no Distrito Federal e a gestão anterior no Rio Grande do Sul) foram exonerados em abril e junho, o que elevou a troca de acusações entre os dois lados.
Monitorada pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann, que já trocou informações sobre o assunto com parlamentares e integrantes do governo, a rixa interna na PRF envolve a disseminação de um dossiê contra a cúpula e uma suspeita de espionagem que foi parar na Polícia Federal. Segundo investigação preliminar da corregedoria da PRF, um dos autores do material seria o policial rodoviário federal Rafael Silva, ex-número dois da superintendência do DF. Ele acessou o sistema de inteligência do órgão para pesquisar dados pessoais do diretor-geral, em fevereiro de 2023. Um procedimento foi instaurado na corregedoria e compartilhado com a PF.
Respaldo político
O suposto caso de espionagem levou à exoneração do então chefe da PRF no DF Igor Ramos, em abril. No mesmo mês, ele havia se filiado ao PT em um evento com a presença de lideranças petistas, como as deputadas federais Erika Kokay (DF) e Adriana Accorsi (GO). O ato foi visto como uma forma de ganhar “força política” para se cacifar ao cargo de diretor-geral. Procurada, Gleisi não respondeu.
Igor Ramos e Rafael Silva são representados pelo mesmo advogado, Rodrigo de Lima. O defensor afirma que a atual gestão da PRF “persegue” agentes que são vistos como postulantes à diretoria-geral e negou que eles sejam os responsáveis pelo dossiê. Segundo o advogado, Silva pesquisou os dados pessoais de Oliveira a pedido do próprio diretor, que teria lhe solicitado ajuda para emitir o passaporte para uma viagem institucional em fevereiro de 2023.
Na mesma época, um outro procedimento foi aberto na corregedoria para apurar visitas de Ramos e Silva a gabinetes de parlamentares. Uma norma interna veta policiais rodoviários de pedirem emendas sem a anuência da coordenação de articulação legislativa da corporação. A defesa nega que isso tenha ocorrido.
Outro superintendente que se indispôs com o atual diretor e acabou exonerado foi o ex-chefe do Rio Grande do Sul Anderson Nunes, filiado ao PT. Ele foi trocado por Fabricio Bianchi Rodrigues, também vinculado à sigla. Procurados, eles não se manifestaram.
As demissões dos ex-chefes da PRF no DF e RS levaram as bancadas do PT nos respectivos estados a manifestar apoio aos agentes junto a integrantes do governo Lula. A sigla avalia que precisa ampliar a influência entre as entidades de segurança pública para reduzir o espaço de grupos bolsonaristas.
Na semana passada, Erika Kokay organizou uma audiência pública na Câmara para expor supostos casos de assédio ocorridos na atual gestão da PRF. O número dois de Oliveira foi convidado para prestar esclarecimentos.
Em troca de mensagens entre policiais e parlamentares do PT, a ala dita “progressista” da PRF acusa a cúpula do órgão de ainda ser vinculada ao bolsonarismo. Aliados do atual diretor, por sua vez, veem uma tentativa de desestabilizá-lo para tirá-lo do cargo.
As queixas do grupo petista já chegaram aos ouvidos do ministro Ricardo Lewandowski (Justiça), que internamente garante Oliveira no cargo e diz que não aceitará interferência política no órgão.
Procurada, a PRF disse que não iria se pronunciar sobre as brigas internas e que não há vedação legal às filiações partidárias. O texto acrescenta que “é proibida a coação ou aliciamento de subordinados no sentido de filiarem-se a partido político”. O Ministério da Justiça informou que se “pauta por critérios exclusivamente técnicos para a escolha dos seus quadros”.
A briga ocorre no momento em que o ministro da Justiça planeja ampliar as prerrogativas da corporação e transformá-la numa polícia com atuação ostensiva, enquanto a PF permaneceria com as atribuições de investigação. As mudanças seriam feitas por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição, que aguarda o aval de Lula.
O fato de um dirigente de um órgão de Estado ser filiado a um partido não configura irregularidade, mas representa mais um capítulo no debate sobre a politização na PRF, que foi taxada de “polícia bolsonarista” na gestão passada. Assim que Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência, em 2023, 26 superintendentes foram retirados do cargo.
A PF apura se o órgão foi usado no dia do segundo turno em 2022 com o objetivo de impedir o deslocamento de eleitores em redutos petistas. Por este suposto caso de interferência, o ex-diretor-geral Silvinei Vasques está preso preventivamente desde agosto de 2023. Ele nega as acusações.
Na véspera do segundo turno, Vasques chegou a utilizar as redes sociais para pedir votos ao então presidente Jair Bolsonaro, o que lhe rendeu um processo na Justiça Federal, depois arquivado.
Vasques é lotado como policial em Santa Catarina, estado em que a PRF hoje é comandada pelo petista Manoel Fernandes Bitencourt, que foi candidato a vereador em 2020. Fernandes diz que tem ligação com o PT desde 1986, quando começou a atuar em pastorais da Igreja Católica.
— Entrei na PRF em 1994 e construí uma carreira trabalhando sempre na atividade-fim. Tive nove anos como chefe de delegacia que me credenciaram. Não é uma função meramente política, construí essa história dentro da polícia — disse Fernandes.
Questionário suspenso
Outro filiado ao PT é Fernando de Oliveira, superintendente da PRF no Paraná. Formado em Jornalismo, ele comandava o setor de comunicação da superintendência durante o governo Bolsonaro, quando foi afastado do cargo após dar uma entrevista em que relacionava o aumento de acidentes com o afrouxamento das medidas contra a Covid-19. Em seu perfil nas redes sociais, ele aparece em foto ao lado de petistas, como o ministro Márcio Macêdo (Secretaria-Geral) e o deputado Zeca Dirceu. Procurado, Oliveira não quis se manifestar.
No último mês, a PRF se envolveu com uma polêmica sobre um questionário aplicado no curso de direitos humanos que perguntava aos agentes sobre as suas “identidades políticas” e “afinidades partidárias”. Diante da repercussão negativa, a direção da PRF suspendeu o formulário e explicou que ele era “anônimo, facultativo” e havia sido desenvolvido pela universidade norte-americana Harvard.
Politização sob Bolsonaro
Campanha pela reeleição: Silvinei Vasques pediu votos para Jair Bolsonaro pelas redes sociais. Num evento, deu uma camisa 22 do Flamengo (número do PL, sigla do ex-presidente) ao então ministro da Justiça, Anderson Torres.
Blitzes em rodovias na eleição: Descumprindo decisão do TSE, Silvinei autorizou operações da PRF em vias no dia da votação do 2º turno para presidente. As ações foram em redutos de Lula, dificultando a locomoção de eleitores.
Sem reação a protestos: A PRF é apontada em ação do Ministério Público como suspeita de omissão em relação aos bloqueios de rodovias feitos por manifestantes bolsonaristas em protesto contra a eleição de Lula.