A discussão aconteceu em um intervalo de apenas quatro horas. Às 17h54 e 18h09 da última quarta-feira, a Câmara aprovou requerimentos de urgência para dois projetos da chamada minirreforma eleitoral — mudanças no Código Eleitoral que flexibilizam regras e, na prática, beneficiam os partidos.
Segundo Marlen Couto, do jornal O Globo, essa medida permitiu pular etapas e levar a proposta diretamente ao plenário, sem necessidade de passar por comissões da Casa. Pouco depois das 22h, o texto-base já havia sido analisado e aprovado, com apoio de parlamentares de siglas de esquerda, direita e do Centrão. A redação final do texto, elaborado por um grupo de trabalho comandado por Dani Cunha (União-RJ) e escolhido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), só veio a público às vésperas de o projeto ser analisado.
Não foi caso isolado. Dois anos após a Casa alterar seu regimento interno e reduzir o poder de obstrução de parlamentares oposicionistas e de siglas menores, a Câmara registra histórico de aprovação de propostas polêmicas a toque de caixa. O jornal mapeou ao menos outros nove casos de propostas com aval de Lira também criticadas pelas votações aceleradas. Os temas dos projetos vão da proteção à classe política e afrouxamento de regras para nomeações em cargos públicos à pauta ambiental e religiosa.
Na avaliação de cientistas políticos, as propostas atendem principalmente a demandas do Centrão, mas não necessariamente recebem apoio apenas desses parlamentares, como foi no caso da minirreforma eleitoral.
Em junho, a votação do requerimento de urgência para votar o projeto sobre discriminação de políticos já havia unido deputados de legendas em lados opostos no espectro político. Parlamentares contrários ao projeto alertaram que não tiveram acesso à versão mais recente do texto, indisponível no sistema da Casa, e defenderam que não houve tempo para debate. O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) ficou surpreso quando ouviu que o mérito seria votado já:
— Estão com pressa, né? — ironizou.
A votação relâmpago foi finalizada mais uma vez tarde da noite. O projeto foi aprovado sem passar por nenhuma comissão temática da Casa.
O deputado federal Kim Kataguiri (União-SP) defende que os colegiados garantem qualidade ao debate. São formados, por exemplo, por parlamentares com mais afinidade com os temas discutidos e contam com audiências para discussão com a sociedade. Ele defende que a urgência deveria ser exceção:
— Não temos mais previsibilidade sobre a pauta. A gente fica sabendo do relatório em cima da hora.
Em dezembro, o mesmo aconteceu na votação relâmpago do projeto para alterar a Lei das Estatais. O trecho que reduziu a quarentena de indicados a ocupar cargos de presidente e diretor das empresas públicas só entrou no relatório da ex-deputada Margarete Coelho (PP-PI), aliada de Lira, no dia em que foi votado em regime de urgência.
O método de votações a toque de caixa também ocorreu na aprovação do Marco Temporal, em maio. No governo Bolsonaro, o caso mais relevante foi o da PEC que permitiu turbinar programas sociais em ano eleitoral.Parte dessas propostas aprovadas às pressas tem ficado parada no Senado. Além da minirreforma eleitoral e do projeto sobre discriminação de políticos, que já receberam a sinalização de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) de que terão uma tramitação mais lenta, são os casos da legalização dos jogos e da chamada PEC do veneno, que flexibiliza pesticidas.
Pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos Ranulfo aponta que Lira diminuiu espaço para obstrução, sob o argumento de agilizar as votações. Uma das mudanças no regimento, feita em 2021, estabelece que, se uma matéria for considerada urgente, os partidos não poderão mais apresentar pedidos de retirada de pauta ou adiamento da discussão. A proposta também acabou com o limite de tempo para uma sessão. Antes, quando uma terminava e outra era aberta em seguida, e a oposição podia apresentar novamente todos os recursos possíveis em plenário para adiar a análise de um texto.
Ranulfo ressalta que esse modelo de tramitação pode eventualmente tanto beneficiar quanto prejudicar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a depender da pauta e do clima político.
— O governo continua tendo influência na pauta, mas a Câmara se fortaleceu. O Legislativo assume maior capacidade de barganha.
O cientista político Josué Medeiros, da UFRJ e do Núcleo de Estudos Sobre a Democracia Brasileira (Nudeb), acrescenta que o contexto da pandemia, quando houve acordo para flexibilizar todo o processo legislativo, também contribuiu para estabelecer esse modelo de atuação.
— Lira não aceita o retorno do modo anterior, com procedimentos mais bem definidos e direitos da minoria mais assegurados — afirma.
Procurado para comentar os casos, Lira não respondeu. O presidente da Casa tem repetido que as decisões sobre tramitação de projetos são tomadas em acordo com os líderes partidários.
Entenda como e quais são as propostas aprovadas a toque de caixa
Minirreforma eleitoral
Resumo do projeto: Atenua punições a partidos e políticos e abre brecha para que as legendas burlem regras. Entre outros pontos, flexibiliza obrigações sobre prestações de contas
Tramitação: O texto foi elaborado por um grupo de trabalho escalado por Lira, apreciado sem debate em comissões e sua versão final só foi conhecida um dia antes da votação.
Projeto contra discriminação de políticos
Resumo do projeto: De autoria de Dani Cunha (União-RJ), tipifica crime de discriminação a pessoas politicamente expostas em instituições bancárias.
Tramitação: A urgência do projeto foi aprovada em 14 de junho e, no mesmo dia, o texto foi à votação sem passar por comissões. Deputados reclamaram da falta de transparência sobre a redação do texto do relator.
Marco Temporal
Resumo do projeto: Restringe a demarcação de terras indígenas àquelas já tradicionalmente ocupadas até a promulgação da Constituição de 1988.
Tramitação: O texto aguardava uma audiência pública. Os deputados aprovaram urgência em 24 de maio e, em 30 de maio, o projeto foi aprovado pelo plenário, em uma reação ao julgamento do tema pelo Supremo.
Decisão pró-réu em empates
Resumo do projeto: O projeto relatado por Elmar Nascimento (União-BA) determina a adoção da decisão mais favorável ao réu, em caso de empate em julgamentos de natureza penal.
Tramitação: O texto não passou pelas comissões. Em 21 de março, entrou em regime de urgência e foi aprovado no dia seguinte.
Afrouxamento na Lei das Estatais
Resumo do projeto: Reduz a quarentena de indicados para presidente e diretor das empresas públicas que participaram de “estruturação e realização de campanha eleitoral”.
Tramitação: A relatora, Margarete Coelho (PP-PI), só protocolou a alteração nas regras no dia em que o relatório foi votado, em 13 de dezembro, em regime de urgência. Antes, o texto só tratava de publicidade nas estatais.
Proibição de edições da Bíblia
Resumo do projeto: Proíbe alteração ou edição de textos da Bíblia e foi criticada por ser genérica e não indicar qual versão da Bíblia deve ser considerada como referência.
Tramitação: O texto foi direto ao plenário em 23 de novembro do ano passado e teve uma votação apenas simbólica. Só recebeu manifestações contrárias do Novo, PSOL e Rede.
PEC Kamikaze
Resumo do projeto: Deu aval para o governo Bolsonaro driblar leis e conceder benefícios sociais na ordem de R$ 41 bilhões em ano eleitoral.
Tramitação: Em vez de passar pela CCJ e por uma comissão especial, o texto foi apensado ao da PEC de biocombustíveis, com tramitação mais avançada. Foram realizadas ainda sessões extraordinárias para acelerar prazos.
Pacote do Veneno
Resumo do projeto: O projeto afrouxa a legislação e garante autonomia ao Ministério da Agricultura para registrar novos agrotóxicos.
Tramitação: Em fevereiro de 2022, o regime de urgência foi aprovado e o texto já foi votado no plenário no mesmo dia.
Legalização dos jogos
Resumo do projeto: O texto libera atividades como cassinos, bingos, jogo do bicho e plataformas digitais de apostas.
Tramitação: Defensor da legalização, Lira atuou para acelerar a tramitação. O texto teve urgência aprovada e foi direto ao plenário.
Alterações na Lei de Improbidade Administrativa
Resumo do projeto: O projeto estabelece que um agente público só poderá ser enquadrado por improbidade se ficar demonstrado que agiu de forma intencional.
Tramitação: Estava na Câmara desde 2018, mas teve sua tramitação acelerada. Deputados contrários às mudanças na lei argumentaram que faltou mais debate e que o projeto deveria passar por comissão especial.
As diferenças nos caminhos dos projetos
Tramitação em regime normal
1. O projeto é apresentado e começa a tramitar primeiro na Câmara, a não ser que seja uma proposta de um senador ou de uma comissão do Senado.
2. O texto é distribuído para comissões temáticas. Se o projeto abrange temas de mais de quatro comissões, é criada uma comissão especial.
3. Em cada colegiado, o parecer do relator é votado e depois encaminhado à comissão seguinte.
4. Se o projeto tiver impacto financeiro, é encaminhado à Comissão de Finanças e tributação. Todos passam por último pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
5. O projeto pode ter tramitação conclusiva já nas comissões e ir ao Senado, ou seguir para discussão e votação no plenário.
Tramitação em regime de urgência
1. O projeto é apresentado e começa a tramitar na Câmara, se não for apresentado por senador ou comissão do Senado.
2. A proposta é distribuída para as comissões temáticas da Casa.
3. O plenário da Câmara aprova um requerimento para o projeto tramitar em regime de urgência. Em geral, essa aprovação depende de acordo de líderes.
4. O texto vai diretamente ao plenário, sem necessidade de passar por comissões. Os relatores nas comissões dão parecer oral durante a sessão, o que permite a votação imediata.
Mudanças recentes no regimento
Desde 2021, a aprovação de urgência passou a acarretar em menos mecanismos de obstrução. Quando é acelerada a tramitação, os deputados não podem mais apresentar requerimento de retirada de pauta na mesma sessão ou de adiamento da discussão.
Foi extinto o limite de tempo das sessões ordinárias e extraordinárias. O prazo era de cinco e quatro horas, respectivamente. Quando não havia tempo para concluir uma votação, uma nova sessão era aberta. A oposição podia pedir nova contagem de quórum e atrasar a análise.