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domingo 29 de maio de 2022 às 12:51h

Cadê todo mundo que pediu demissão? Eles estão trabalhando

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Se o Applebee’s fosse o sistema solar – e durante quase seis anos, foi isso que ele pareceu para Nick Haner – o cliente sempre foi o sol. Tudo girava em torno dele. Conforme matéria do Estadão, o cliente estava sempre certo, disseram a Haner. Até mesmo quando o cliente cuspiu na cara dele. Quando gritou que a salada deveria ter sido servida quente, não fria. Mesmo quando o cliente rasgou pela metade a gorjeta de U$2.

Mas algo aconteceu no ano passado e fez mudar aquela órbita. Tudo começou com as placas que Haner viu surgindo nas vitrines enquanto dirigia para o trabalho: “Estamos contratando!”. O McDonald’s estava contratando. A Walgreens estava contratando. O Taco Bell estava fechando mais cedo devido à falta de funcionários. Todos em Midland, no Michigan, ao que parecia, precisavam de trabalhadores. Então Haner começou a se perguntar: por que o trabalho não deveria girar em torno de pessoas como ele?

“É uma loucura absoluta”, disse Haner, 32 anos, que pediu demissão do Applebee’s no ano passado e aceitou um emprego totalmente remoto no setor de vendas de uma empresa de tecnologia. “Decidi arriscar porque pensei: ‘se não der certo, posso encontrar outras cem vagas por aí’.”

Mais de 40 milhões de pessoas deixaram seus empregos no ano passado, muitas nos setores de varejo e hospitalidade. Isso foi chamado primeiramente de a Grande Renúncia, e, depois, por uma enxurrada de outros nomes: a Grande Renegociação, a Grande Reorganização e o Grande Repensar. Mas as pessoas não estavam deixando de trabalhar completamente. Elas ainda precisavam ganhar dinheiro. Grande parte das ajudas financeiras devido à pandemia pararam no segundo semestre, e os montantes disponíveis nas poupanças caíram para o menor nível em nove anos, 6,4%; em janeiro. O que os trabalhadores perceberam, no entanto, é que eles poderiam encontrar maneiras melhores de ganhar a vida. Melhores salários. Expedientes estáveis. Flexibilidade. Eles esperavam mais de seus empregadores e pareciam estar conseguindo isso.

O Applebee’s disse que a segurança de seus funcionários e clientes era uma prioridade. “Comportamento agressivo de qualquer tipo não é permitido”, disse Kevin Carroll, diretor de operações da empresa.

Em todo os Estados Unidos, os trabalhadores tinham oportunidades abundantes e podiam rejeitar o que antes eram forçados a tolerar – fossem chefes rígidos ou abuso de clientes. E para manter os negócios funcionando, os chefes tiveram que começar a escutá-los.

“As pessoas veem isso como uma rejeição ao trabalho, mas eu vejo como as pessoas tirando proveito de uma abundância de oportunidades de emprego”, disse Nick Bunker, diretor de pesquisa econômica para a América do Norte no laboratório de contratação do site Indeed. “As pessoas precisam pagar as contas.”

Conforme as vacinas e as ajudas financeiras foram disponibilizadas no ano passado, os governos estaduais e locais incentivaram um retorno à normalidade, as empresas ficaram desesperadas por trabalhadores. Os profissionais aproveitaram o momento para reavaliar o que esperavam de seus empregadores. Isso não quis dizer que milhões ficaram sem trabalhar para sempre e se livraram de seus computadores. Significou que os trabalhadores com salários baixos penduraram os aventais e se dirigiram para outros locais de trabalho com a placa “estamos contratando” na porta. Também quis dizer que os trabalhadores de escritório, encorajados pelo mercado de trabalho aquecido, disseram aos seus empregadores exatamente como e onde queriam trabalhar.

“Nossos funcionários têm o poder”, disse Tim Ryan, presidente da PwC nos EUA, que está no meio de uma transição de três anos que possibilita um estilo de trabalho mais flexível, inclusive permitindo que grande parte dos funcionários continue trabalhando de forma remota permanentemente, um processo que Ryan calcula ser um investimento de US$ 2,4 bilhões.

Essa transição de local de trabalho é tão magnífica que o executivo da empresa de 55 mil funcionários teve de descrevê-la com uma referência da Disney de 2003.

“Há uma fala em ‘Piratas do Caribe’ – tenho seis filhos – onde um dos personagens diz a Elizabeth: ‘Você acredita em pesadelos? Deveria, porque estamos vivendo em um’”, continuou Ryan, com uma memória impressionante, mas um pouco equivocada do capitão. O diálogo do personagem Hector Barbossa é sobre histórias de fantasmas. “Estamos vivendo essa transformação incrível do local de trabalho e nem nos damos conta porque estamos imersos todos os dias participando dela.”

Muitos daqueles que pediram demissão no ano passado, na verdade segundo o Estadão, são pessoas que costumam trocar de emprego, de acordo com dados da Secretaria de Estatísticas Trabalhistas dos EUA e do censo americano, que mostram uma correlação de quase 1 para 1 entre a taxa de pedidos de demissão e a troca de emprego. Esses profissionais tendem a ser de setores como lazer, hospitalidade e varejo. A taxa de demissão de trabalhadores dos ramos de lazer e hospitalidade subiu de 4% para quase 6%, desde o início da pandemia. No varejo, ela saltou de 3,5% para quase 5%. Os empregadores de trabalhadores de escritório ainda estão tendo dificuldades para contratar, mas viram muito menos pessoas deixando seus empregos. A taxa de pedidos de demissão no setor de finanças, por exemplo, caiu no início da pandemia e agora está um pouco abaixo de 2%, e nas atividades de mídia e tecnologia, ela permaneceu quase estável, também abaixo de 2%.

Quando os trabalhadores trocavam de emprego, muitas vezes passavam a ganhar mais. Os salários cresceram aproximadamente 10% nos setores de lazer e hospitalidade no último ano, e mais de 7% no do varejo. Os profissionais também conseguiram aumentar o número de horas trabalhadas, já que as porcentagens daqueles que trabalhavam meio período diminuíram involuntariamente.

Uma pequena parcela de pessoas deixou completamente de trabalhar, embora a maior parte dela tenha sido de homens mais velhos que se aposentaram antes dos 65 anos – e alguns deles agora estão voltando ao batente. A discrepância entre baby boomers que se aposentam e um grupo menor de jovens que ingressam no mercado de trabalho também contribuiu para a escassez na oferta de mão de obra. Mas, de um modo geral, as pessoas não deixaram de trabalhar e não podem se dar ao luxo de fazer isso. O ano passado trouxe menos pedidos de demissão e mais negociações – para novos empregos, melhores expedientes e salários.

Na verdade, os trabalhadores não mudaram seus sentimentos em relação ao trabalho; eles mudaram suas expectativas. “A maioria das pessoas nunca quis trabalhar e só trabalha porque precisa disso para viver”, disse Rebecca Givan, professora de estudos do trabalho da Universidade Rutgers. “Agora os trabalhadores estão dizendo: ‘Vamos fazer nossos chefes assumirem a responsabilidade e exigir mais deles’.”

Porsha Sharon, 28 anos, ainda lembra dos acessos de raiva que testemunhou de clientes que ela atendeu no ano passado na Buddy’s Pizza em Troy, no Michigan. Uma mulher entrou no restaurante e simplesmente pediu uma pizza e Porsha respondeu, apontando para o extenso cardápio: “De qual sabor?”.

“Você não ouviu o que eu disse?”, a cliente respondeu, de acordo com a lembrança de Sharon. “Você é burra?”

Outros clientes zombaram de Porsha por ela usar uma máscara. Os expedientes de oito horas terminavam com pés inchados e doloridos. Ela recebeu uma oferta de emprego em março para começar a trabalhar como assistente administrativa em um escritório de advocacia, algo que já havia feito temporariamente durante a faculdade, e no mês passado pediu demissão do restaurante.

“A geração anterior se sentia péssima em seus empregos, mas continuava neles porque supostamente era aquilo que deveriam fazer”, disse Porsha. “Nós não somos assim, e eu amo isso na gente. Somos do tipo, ‘Este trabalho está me sobrecarregando, estou ficando doente porque meu corpo está falhando e já deu para mim.’”

Katy Dean, diretora de operações da Buddy’s Pizza, uma rede de restaurantes de Michigan, disse que clientes agressivos são um “elemento desafiador” do clima atual nos serviços de alimentação. “Quando um cliente se recusa a se acalmar e a tratar nossos funcionários com respeito, encorajamos nossos gerentes a pedir que esse cliente saia do restaurante”, disse Katy.

Este momento no local de trabalho tem sido tachado como falta de ambição. Mas para muitos trabalhadores, a frustração deu passagem para uma explosão de solicitações ambiciosas por melhores empregos: por promoções, trocas de setor, expedientes estáveis, licença médica, licença por luto, licença maternidade, planos de aposentadoria, medidas de segurança e férias. “Ninguém quer mais trabalhar”, dizia uma placa do lado de fora do McDonald’s em um vídeo que se tornou viral no TikTok. Ao qual o ex-secretário do Trabalho dos EUA Robert Reich respondeu: “Ninguém quer mais ser explorado”.

No ano passado, quando milhões disseram “peço demissão”, o acerto de contas foi muito além dos limites das empresas e das indústrias em seu centro. Os trabalhadores de escritório não estavam deixando os empregos no mesmo ritmo rápido que os de setores como hospitalidade e varejo. Mas eles fizeram exigências ousadas a seus empregadores mesmo assim, cientes de que o desemprego estava baixo e a competição por talentos, acirrada.

“Existe a ameaça de pedir demissão no lugar do pedido de demissão de verdade”, disse Bunker. “Os funcionários se deram conta de que têm poder de barganha.”

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Eles estão exercendo esse poder, sobretudo, no que diz respeito à flexibilidade. O fechamento dos escritórios deu aos trabalhadores uma sensação de autonomia que eles não estavam dispostos a abrir mão. Até mesmo alguns dos chefes aparentemente mais inflexíveis de Wall Street reconheceram que os antigos padrões não podiam ser mantidos. Citigroup, Wells Fargo e BNY Mellon, por exemplo, disseram aos funcionários que o retorno deles ao escritório seria no esquema híbrido, e não significaria se deslocar até o local cinco dias por semana.

Apenas 8% dos trabalhadores de escritório de Manhattan estão de volta ao local de trabalho cinco dias por semana, de acordo com dados divulgados pela organização sem fins lucrativos Partnership for New York City.

“Minha qualidade de vida aumentou tanto que não haveria como me convencer de que voltar a um escritório valeria a pena”, disse Lyssa Walker White, 38 anos, que trocou de emprego no início deste ano por causa da expectativa de seu antigo empregador de que ela voltasse ao local de trabalho.

Alguns empregadores continuaram pedindo que seus funcionários voltassem aos escritórios, pelo menos durante uma parte da semana, e descobriram que enfrentariam resistência absoluta. A Apple, por exemplo, que exigia a presença dos trabalhadores no escritório três dias por semana, recebeu recentemente uma carta aberta dos funcionários detalhando sua forte oposição ao trabalho presencial.

“Parem de tentar controlar com que frequência vocês podem nos ver no escritório”, escreveram os profissionais da Apple. “Por favor, parem de fazer isso, não existe uma solução única para todos, nos deixem decidir como trabalhamos melhor e nos permitam fazer o melhor trabalho de nossas vidas.”

A empresa não quis se pronunciar. Sua exigência de retorno ao escritório permanece em vigor.

Em outros locais de trabalho, sindicatos recém-formados abraçaram a causa do trabalho remoto. O sindicato Nonprofit Professional Employees, por exemplo, aumentou seu número de associados de 12 organizações e 300 trabalhadores em 2018 para aproximadamente 50 organizações e 1.300 profissionais este ano. Uma organização afiliada ao sindicato garantiu um acordo de que os gestores cobririam os custos de deslocamento dos trabalhadores obrigados a voltar ao escritório. Outra conseguiu que sua diretoria concordasse em dar justificativas aceitáveis para qualquer funcionário cujo retorno ao local de trabalho fosse exigido.

Em uma recente conferência da indústria, Jessica Kriegel, chefe de pessoas e cultura da Experience.com, empresa de tecnologia, reuniu-se com colegas de recursos humanos e eles compartilharam todos os tipos de relatos sobre como enfrentar as solicitações de profissionais corajosos. Havia histórias de pessoas pedindo aumentos que quadruplicavam o tamanho de seus salários. Outras de reuniões de estratégia da empresa que antes eram realizadas como retiros a portas fechadas em Napa, na Califórnia, e agora foram expandidas para incluir funcionários de nível júnior em prédios públicos.

Jessica disse que deu um aumento impressionante a um profissional de desempenho excepcional e viu outra disputa por três promoções, passando de colaborador a diretor e vice-presidente, em apenas um ano.

“Eles estão pedindo mudanças de títulos que nem mesmo estão associados a promoções financeiras para colocar em seu LinkedIn”, disse Jessica. “As pessoas que estão começando a trabalhar estão recebendo títulos de nível de diretoria.”

Por isso, a chefe de recursos humanos levanta uma sobrancelha quando escuta os colegas dizerem que as pessoas não estão querendo trabalhar, porque ela está vendo seus funcionários se mexerem para conseguirem exatamente o tipo de trabalho que querem realizar. “Estamos começando a ver as pessoas perceberem que não precisam viver com medo”, disse ela. “Não se trata de falta de ambição. Trata-se de uma ambição inacreditável.”

Haner, que deixou de trabalhar no Applebee’s, recebeu recentemente um aumento de 16%, o que o fez ganhar por hora um valor consideravelmente maior do que recebia no antigo emprego. Quando os amigos perguntam a respeito de seu novo trabalho, ele menciona as conversas atenciosas que tem com seu gerente. Quando pediu para não trabalhar por causa do funeral de seu avô, o que, segundo ele, teria provocado hesitação no Applebee’s, foi informado de que seu empregador atual dá direito a licença por luto.

Embora o trabalho continue sendo trabalho, quando o despertador toca de manhã, Haner não sente mais aquele sentimento de pavor, pois ele deu espaço a uma nova sensação: “Eles nos tratam com respeito”.

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