Quase 400 mil brasileiros vivem de forma legal em Portugal segundo os dados da Agência para a Integração, Migração e Asilo do país divulgados em 2023. É a maior comunidade de imigrantes no país, representando 40% dos estrangeiros, e também a que tem mais direitos políticos: são os únicos que podem votar em todas as eleições, após um acordo diplomático assinado em 2001 – o que não acontece com cidadãos de outras nacionalidades.
Nas eleições parlamentares deste domingo (10/3), só podem votar os portugueses e os cidadãos brasileiros residentes em Portugal com cartão de cidadão ou bilhete de identidade e estatuto de igualdade de direitos políticos.
Milhares de brasileiros que vivem em Portugal têm dupla nacionalidade. Os últimos dados oficiais, de 2021, apontam que, só naquele ano, 48.874 brasileiros receberam a nacionalidade portuguesa. Desde 2017 até 2021, o número total de brasileiros que conseguiu nacionalidade portuguesa foi de 225.466 pessoas. Além deles, também estariam aptos a votar 478 brasileiros que estão em posse do estatuto de igualdade jurídica e de direitos políticos, de acordo com dados fornecidos à BBC Brasil pelo Ministério da Administração Interna.
Nos últimos anos, o perfil do imigrante brasileiro em Portugal tem se diversificado muito. “É um perfil muito heterogêneo”, conta Ana Paula Costa, pesquisadora e vice-presidente da Casa do Brasil, uma organização sem fins lucrativos de apoio aos imigrantes. “A imigração é feita para diversas áreas: tem o perfil do estudante, o perfil do trabalhador, o perfil do empreendedor e os que vêm para investir. Há ainda os que vêm para se reunir com a família, que imigrou em anos anteriores”, explica.
Ainda assim, a pesquisadora considera que “a comunidade brasileira aqui é muito politizada e manifesta muito interesse nas eleições”, e que “suas principais preocupações têm a ver com a habitação, a saúde e questões específicas da imigração.”
Em relação às eleições de domingo, a comunidade parece ter herdado a polarização que o Brasil viveu em disputas políticas recentes. Em Portugal, os brasileiros estão divididos entre os que temem o crescimento da direita radical, representada pelo Chega, e os que apoiam o partido, muitos deles se envolvendo diretamente com a sigla.
“Olho para essas eleições de forma bem preocupante”, conta Hérika Nogueira, que veio de Brasília para Lisboa há oito anos e trabalha em um museu na capital portuguesa. “Já desde as últimas legislativas a gente tem visto crescer a extrema direita de forma expressiva. E ver um partido que tem políticas xenófobas, racistas, que é contra a imigração, ser terceira força, é assustador”, diz ela.
“Acho que é o que mais me assusta nestas eleições”, corrobora Mariana Rezende, de Minas Gerais, que trabalha como tradutora em Lisboa há 10 anos. “Ver que as pessoas estão votando contra os seus próprios interesses. Que votam por políticas neoliberais, de privatização, dos interesses privados… O que eu vejo é que as pessoas estão cada vez mais espremidas e sem perspectiva de um projeto de vida e se deixam levar por discursos populistas, que culpam os imigrantes”, diz Mariana.
O controle da imigração faz parte do programa de André Ventura, principal líder do Chega, que quer instituir no país o crime de “residência ilegal em solo português” e impor cotas anuais de entrada de estrangeiros no país com base “nas qualificações dos imigrantes e nas necessidades do mercado português”.
As propostas, na visão dos seus apoiadores, querem apenas garantir uma “imigração responsável”. É assim que as define Cibelli Almeida, militante número 501 do Chega – ou seja, uma das fundadoras do movimento. “O Chega não é contra a imigração, o Chega é contra essa imigração irresponsável e descontrolada e eu não quero ver aqui o que aconteceu no meu país, onde eu era vítima de assalto o tempo inteiro”.
A violência em Recife, sua cidade natal, foi a razão que levou Cibelli a emigrar há 13 anos, quando foi viver em Braga para fazer doutorado em Ciências da Comunicação.
Apesar de não haver nenhum dado que relacione a imigração em Portugal ao aumento da criminalidade ou da violência, esta é a razão mais apontada pelos apoiadores do Chega para defender o maior controle das fronteiras.
“O discurso do partido é contra o descontrole da imigração”, diz Luciano Blandy, dirigente de um dos diretórios do Chega em Braga.
Blandy veio de Santos há sete anos. “Não está escrito na minha testa que eu sou honesto. Se aumentar o volume de imigrantes, sem nenhum controle, para vir fazer asneira, isso vai prejudicar todos os imigrantes que já estão aqui.”
Excepcionalidade
Para a pesquisadora Ana Paula Costa, essa visão está associada a uma certa “ideia de excepcionalidade” do imigrante brasileiro. “O Chega tem tido o cuidado de não falar abertamente da imigração brasileira e refere-se mais à imigração do sul da Ásia e talvez por isso há uma sensação de excepcionalidade do imigrante brasileiro apoiador do Chega, que pensa que não será atingido pelo que o Chega diz”.
“Mas, na verdade”, continua Costa, “o discurso inflamado de extrema direita atinge todos os imigrantes porque traz questões do aumento da xenofobia, do racismo, da discriminação e do discurso de ódio para a esfera pública.”
“E, se chegar ao governo, pode começar a reverter as políticas de imigração, com efeito direto na comunidade”, diz a pesquisadora.
Segundo dados da Comissão para Igualdade e Contra a Discriminação Racial do governo de Portugal, as denúncias de xenofobia contra imigrantes brasileiros cresceram mais de 500% nos últimos 5 anos: desde 2017, quando se abriu a série histórica, até 2022, data dos últimos dados recolhidos. Se em 2017 só foram registradas 18 denúncias, em 2022 foram 109.
“O que acontece é que se vai criando um caldo de cultura no espaço social que vai legitimando pensamentos reacionários e as pessoas se sentem cada vez mais legitimadas para serem mais discriminatórias e racistas”, explica Carlos Hortmann, historiador, que veio de Santa Catarina para Lisboa há 15 anos.
Uma discriminação que às vezes é óbvia e outras mais sutil: “Por ser branca, de classe média e estar no meio acadêmico, o tipo de discriminação que eu sofro é mais velado, mas ele existe. Quando eu falo, quando surge o meu sotaque, por exemplo…”, conta Mariana Rezende.
Em 2020, Cibelli Almeida foi alvo de um ataque xenófobo dentro do próprio partido, quando um militante do Chega a atacou no Facebook.
“Não vai ser uma brasileira que vai mandar nos destinos de um partido nacionalista, patriótico. Nunca, não permitirei”, escreveu.
Hoje, Cibelli minimiza o acontecido: “Foi no calor de eleições internas e nessas situações as pessoas falam sem pensar. Foi um único episódio e ele já me pediu desculpas”, diz.
Conservadorismo
A proximidade entre André Ventura e Jair Bolsonaro nos valores que defendem é outra das razões que explicam o apoio de parte da comunidade brasileira ao Chega.
“As pessoas que apoiavam o Bolsonaro no Brasil têm um discurso muito forte em relação ao aborto, à religião e contra os temas de gênero. Se emigram para Portugal, trazem esses valores com elas”, diz a pesquisadora Costa. “E aqui, o partido que mais se assemelha nessas questões é o Chega. E esquecem a condição de imigrantes”, resume.
No ano passado, André Ventura já tinha se aproximado dos apoiadores de Bolsonaro em Portugal ao organizar uma manifestação contra o presidente Lula quando ele visitou o país na celebração da Revolução do 25 de Abril. E, nesta campanha eleitoral, Ventura voltou a insisitir que se for primeiro ministro, “em 25 de Abril de 2024, o senhor presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, não vai entrar em Portugal”.
O próprio Jair Bolsonaro manifestou apoio a André Ventura em janeiro, num vídeo publicado nas redes sociais. “É muito importante que André Ventura, do Chega, consiga essa cadeira de primeiro-ministro. É a direita, é o conservadorismo, são as pessoas de bem que se fazem cada vez mais presentes nesse momento”, disse o ex-presidente do Brasil.
Também foi o conservadorismo que aproximou Renata Maia do Chega.
A advogada chegou a Portugal há cinco anos para fugir da violência do Rio de Janeiro depois do nascimento da primeira filha. “Eu sou pró-vida, muito contrária à ideologia de gênero, da imposição dela nas escolas, ao fato do Estado querer cada vez mais interferir na educação dos filhos… Então o Chega é o partido que mais defende essa pauta”, explica.
Sobre a imigração, Renata não vê nenhuma contradição entre ser imigrante e defender controle das fronteiras: “Eu não vejo xenofobia aí, mas sim uma preservação da cultura local, porque se as fronteiras se abrem sem controle, a cultura acaba se esvaziando. O Chega não é contra qualquer imigração, é contra a imigração descontrolada, que vem para viver de subsídio”.
Esta batalha cultural é o foco que Hérika vê no discurso de Ventura, que alguns brasileiros apoiam. “É como se uma parte da comunidade brasileira tivesse esquecido da sua condição de imigrante. Um nepalês, uma pessoa do sul da Ásia, esse é o diferente, a gente não. É como se houvesse uma hierarquia de diferenças onde o brasileiro é menos diferente”.
Para Geizy Fernandes, candidata pelo partido de esquerda Livre, o Chega criou um novo conceito de “imigrante de bem” e “alguns brasileiros compraram essa narrativa de colocar a nacionalidade brasileira contra outras nacionalidades, o que é um absurdo, porque todos somos imigrantes”.
Geizy chegou há 15 anos em Lisboa vinda de Minas Gerais e rapidamente se envolveu na política: “Comecei num movimento civil que depois deu origem ao partido Livre”.
Para estas eleições, Geizy teme uma repetição do que já viu no Brasil: “Estas eleições decidem se Portugal no futuro será uma sociedade aberta para o acolhimento e integração ou se ela vai se fechar em si própria. Nós vimos acontecer isso no Brasil, com o discurso da polarização de Bolsonaro, e eu não gostaria de ver repetido aqui, em Portugal”.