Quase quatro meses após o início do ano legislativo no Congresso, o governo Lula (PT) enfrentará nas próximas duas semanas uma série de pautas que representam o primeiro teste de relevo de sua base na Câmara dos Deputados e no Senado.
Entre outros pontos, serão votadas as primeiras medidas provisórias importantes editadas por Lula —sete delas precisam ser analisadas até 1º de junho para não perderem efeito— e o novo arcabouço fiscal proposto pelo Planalto e já modificado pelo relator, Cláudio Cajado (PP-BA), com votação prevista para esta quarta-feira (24).
O choque de realidade chega segundo Danielle Brant, Catia Seabra e Ranier Bragon, da Folha, após uma expressiva vitória no requerimento de urgência do arcabouço, quando 367 deputados concordaram em acelerar a tramitação do projeto, evitando que ele passe por comissões na Câmara e permitindo que seja avaliado diretamente no plenário.
O placar folgado —foram apenas 102 votos contrários— levou uma ala do governo a propagar a solidez da base conquistada a partir da distribuição de emendas, cargos e ministérios a partidos de centro-direita como União Brasil, PSD e MDB.
A vantagem, no entanto, deve se manter circunscrita a reformas econômicas de agrado do mercado e do centrão, avaliam aliados. O que for considerado retrocesso pelo Congresso não irá andar, como disse o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
O primeiro recado foi dado na Câmara em 3 de maio com a votação do projeto de decreto legislativo que sustou parte das alterações no saneamento feitas pela gestão petista.
Com a expectativa de que o cenário se repetisse no Senado, o governo intensificou a articulação junto aos senadores para tentar manter algumas mudanças, deixando em segundo plano a ideia anterior de editar uma medida provisória ou projeto de lei sobre o tema.
Mais cedo no mesmo dia, o governo havia editado outro decreto retomando a exigência de que turistas de EUA, Austrália, Canadá e Japão apresentem visto para entrar no país.
A medida causou nova insatisfação no Congresso e mesmo dentro do governo, pelo impacto negativo que pode ter para o turismo. Um novo projeto foi apresentado para sustar o texto e, segundo parlamentares, deve ter o mesmo resultado negativo para o governo.
Além disso, até 1º de junho precisam ser votadas na Câmara e no Senado medidas provisórias que contemplam a espinha dorsal da organização pensada por Lula para seu terceiro mandato.
O presidente tomou decisões que irritaram alguns setores, em especial o agro, após transferir a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) do Ministério da Agricultura para o do Desenvolvimento Agrário.
Com a repercussão negativa, o próprio governo já se rendeu à necessidade de costura de um acordo para a configuração do Ministério do Desenvolvimento Agrário, comandado pelo petista Paulo Teixeira.
Parlamentares do centrão, em especial os ruralistas, se opõem à manutenção de toda a estrutura da Conab vinculada à pasta de Teixeira.
Argumentam que o governo poderia privilegiar o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na aquisição de alimentos para formação de estoques reguladores. Por isso, defendem que essa competência retorne para o Ministério da Agricultura.
Sob forte pressão no Congresso, o governo acena com uma gestão compartilhada da Conab.
Os ruralistas reivindicam ainda que o cadastro ambiental rural não fique sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente, e sim que seja administrado também pela Agricultura.
Outro ponto em debate dentro do governo é o destino da ANA (Agência Nacional de Águas), responsável pela implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Hoje, está subordinada ao Ministério do Meio Ambiente. Há no Congresso pressão para que seja reincorporada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, chefiado por Waldez Góes.
Parlamentares dão como certa a reestruturação da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) pelo Congresso Nacional. No entanto, governistas afirmam que a extinção é irreversível e que seria impossível reconstituí-la, até porque seus quadros foram transferidos para outros ministérios.
Outras pautas também devem exigir esforço de articulação com o Congresso para evitar derrotas em temas caros ao governo.
Em resposta à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de marcar o julgamento sobre o marco temporal na demarcação de terras indígenas, Lira sinalizou que pautaria a urgência de um projeto que trata do assunto e que é criticado por ambientalistas.
Segundo a tese, os indígenas que não estavam em suas terras em 5 de outubro de 1988 —data da promulgação da Constituição— não teriam mais direito sobre elas, ainda que existam pareceres antropológicos demonstrando que elas pertenceram a seus antepassados. O texto tem apoio de ruralistas e da oposição, que, somados, poderiam ser suficientes para aprovar a urgência.
Em outra seara, o governo não tem conseguido enfrentar um tema que considera crucial, em especial após os ataques de 8 de janeiro: a regulação das big techs.
Após uma vitória apertada na votação da urgência (238 votos a 192), o governo não tem conseguido apoio para aprovar o projeto que regulamenta as redes sociais e impõe sanções a plataformas que descumprirem normas de moderação de conteúdo.
A proposta foi fatiada para tentar viabilizar a aprovação, separando trechos sobre direitos autorais e remuneração de conteúdo jornalístico do projeto principal que trata de regulação das empresas. Ainda assim, as resistências permanecem.
Em meio a esse cenário adverso, o governo se prepara para enfrentar desgaste em uma CPI que terá como alvo o MST, um de seus principais aliados. A composição do colegiado já é uma prévia do que pode esperar a gestão Lula pelos próximos 120 dias —com possibilidade de prorrogação por mais 60.
O relator será Ricardo Salles (PL-SP), ex-ministro do Meio Ambiente do governo Jair Bolsonaro (PL) e um dos principais antipetistas do Congresso.
Lula tem uma base de esquerda que se resume a apenas cerca de um quarto das cadeiras do Congresso. Por isso, distribuiu ministérios a partidos de centro e de direita e busca apoio no varejo, com a partilha de emendas e cargos. Nesse ponto, há pressão de Lira e seus aliados para manter a gerência desses repasses, como forma de ter melhores resultados na obtenção de apoio.