Nos espaços de poder e tomada de decisão, quem discute o centro é quem vive no centro? É possível pensar a cidade de Salvador sem a presença de quem a constrói no cotidiano? Essas foram algumas das provocações que nortearam a audiência pública popular “Viver – Morar – Trabalhar no Centro Histórico e Centro Antigo de Salvador”, realizada na tarde desta quinta-feira (19), no Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos (CEPAIA/UNEB).
Organizada pela Articulação do Centro Antigo, que reúne seis movimentos e comunidades que lutam pelos direitos de moradores e trabalhadores da região, como Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Bahia (MSTB), Artífices da
Ladeira da Conceição da Praia, Centro Cultural Que Ladeira é Essa?, Vila Coração de Maria, Movimento Nosso Bairro é Dois de Julho e Associação dos Amigos de Gegê dos Moradores da Gamboa de Baixo, a iniciativa foi formalizada através do mandato do vereador Sílvio Humberto (PSB) e buscou discutir as demandas dos moradores sobre habitação social, cultura, turismo e permanência da população negra no território.
Os movimentos populares convocaram diversas entidades, instituições e órgãos que estão direta ou indiretamente envolvidos na disputa fundiária do Centro Antigo.
Participaram da mesa representantes da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Fundação Mário Leal Ferreira, Superintendência do Patrimônio da União na Bahia (SPU/BA), Secretaria Estadual de Turismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Defensoria Pública do Estado (DPE/BA) e Ministério Público do Estado (MP/BA).
Ausências importantes, como do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), foram salientadas pelos participantes como expressão do descaso com o tema. “É inconcebível que um órgão estadual como o IPAC, que coordena um parque imobiliário de Salvador não esteja aqui hoje na audiência pública”, salientou a defensora pública Bethânia Ferreira do Núcleo de conflitos fundiários da DPE. Ainda, apesar de convidadas, não se fizeram presentes a Secretaria Estadual de Urbanismo (Sedur) e Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult).
Centro para quem vive, mora e trabalha
Os movimentos destacam a necessidade de abrir esse espaço de escuta e diálogo entre órgãos públicos e população do Centro Antigo, que é majoritariamente negra e pobre. “Nós não podemos ser invisibilizados. Participação popular é isso: nada de nós sem nós. É o povo negro unido em defesa do direito de viver, trabalhar e existir no Centro Antigo”, destacam lideranças da Articulação do Centro Antigo.
Nos últimos anos, os moradores da região vêm denunciando a intensificação do processo de especulação imobiliária no Centro Antigo, que, com o aval dos entes municipais, estaduais e federais, têm levado à expulsão dos moradores do território para dar lugar a empreendimentos comerciais.
Diante da proximidade do processo de revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador, as entidades e movimentos reforçam a necessidade de se repensar esse projeto de cidade que não valoriza a vida daqueles que tornam a cidade viva.
“É muito equivocado que as políticas voltadas a esse território sejam direcionadas ao empresariado, não às pessoas que vivem aqui. São as pessoas que nasceram e vivem aqui que têm o direito de permanecer nessa região”, destaca Apoena Ferreira, urbanista e assessora do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS). “Quem estruturou essa cidade, quem mantém essa cidade viva é o povo preto. A cidade precisa acolher nosso projeto de futuro para além das migalhas que nos são postas”, completa a professora Gabriela Leandro, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Ufba (Faufba).
Muitas perguntas, poucas respostas
Os movimentos sociais apresentaram um documento que sistematiza as principais questões da população para as autoridades presentes. Todas elas trazem em comum a necessidade de respostas diante da ausência de um projeto popular de regularização da situação dos moradores do Centro Histórico e do descaso com a vida e com os direitos da população negra e pobre. No entanto, muitas das perguntas ficaram em aberto ou demandam aprofundamento.
Gilbert Santos, coordenador de projetos na Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (Conder), defende que a empresa está em processo de renovação e que vai chamar a comunidade para o diálogo. “A equipe da Conder tem uma preocupação com o sentimento de pertencimento das pessoas, não só no Pelourinho. Com certeza vocês vão perceber essa retomada [de diálogo]”, aponta. Vinculada à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano, a Conder é a empresa responsável pela implementação de projetos e obras nas áreas de mobilidade urbana, habitação, qualificação urbanística e edificações de prédios públicos.
“Estamos com uma equipe para fazer o cadastro de todos esses imóveis. Estamos usando uma tecnologia nova, que agiliza o processo”, destaca Tânia Scofield, presidente da Fundação Mário Leal Ferreira, entidade responsável pela elaboração de planos e projetos de desenvolvimento urbano da Prefeitura.
No entanto, os movimentos sociais afirmam que não houve até o momento uma construção conjunta com os moradores locais, representantes, vendedores ambulantes, entidades do movimento negro para definir as etapas desse processo e para apontar quais serão as famílias que ocuparão os imóveis destinados à habitação. Salienta-se, ainda, que o Pilar é uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), área destinada, necessariamente, à moradia popular, que deve ser dotada de segurança jurídica e acesso a equipamentos e serviços públicos.
Como encaminhamento, a Articulação do Centro Antigo de Salvador provocou a criação de um Núcleo de Mediação de Conflitos composto por órgãos e entidades pertencentes ao Município, Estado e União, além de entidades parceiras como as universidades que tratem dos temas que envolvem o território, para resolver as demandas que estão a muito tempo travadas no Centro Histórico e Centro Antigo de Salvador, que foram lidas e entregues durante a audiência. Ficou definido que cada órgão e entidade indique um representante para compor o citado Núcleo, em 30 dias úteis contados do dia seguinte ao da audiência pública. Ficou definida para o dia 24 de novembro a primeira reunião do novo Núcleo de Conflitos Fundiários do Centro Antigo de Salvador.