Em pleno século XXI, o mundo ainda se defronta com os horrores da guerra, como se os dois grandes conflitos mundiais do século passado, somados às guerras do Vietnã, das Malvinas e do Golfo, para citar somente algumas, não tivessem sido suficientes para desnudar o sofrimento humano imposto pelas disputas bélicas.
Há quase um mês vimos assistindo à guerra entre Israel e Hamas/Gaza, eclodida após o ataque terrorista do Hamas, com um saldo sangrento de cerca de 15 mil vítimas fatais; crianças decapitadas; idosos torturados; mulheres violentadas, espancadas e depois assassinadas; centenas de cidadãos sequestrados; vidas abreviadas, famílias dizimadas e cidades destruídas.
A barbárie se repete e se propaga, a ponto de praticamente colocar em segundo plano das atenções mundiais a invasão da Rússia à Ucrânia, conflito que já dura cerca de 19 meses, com bombardeios aéreos, disparos de mísseis, operações da infantaria e da esquadra naval, tudo desafiando a diplomacia mundial. Não bastasse a crueldade que o conflito representa por si só, ainda ressuscitou o fantasma da utilização de armas nucleares, ameaça que parecia adormecida desde o fim da Guerra Fria.
Momentaneamente ofuscado no noticiário, o conflito entre Rússia e Ucrânia já soma cerca de 560 mil vítimas, entre mortos e feridos, segundo divulgou o jornal norte-americano The New York Times. Do lado russo, são 120 mil militares mortos e outros 180 mil feridos. Entre os ucranianos, 70 mil militares e 60 mil civis mortos, e 130 mil pessoas feridas. A infraestrutura está em ruínas e muitas cidades foram destruídas por completo. Um saldo estarrecedor em todos os aspectos.
Em menos de dois anos, o conflito no leste europeu já consumiu cerca de US$ 800 bilhões e especialistas especulam que os gastos dessa guerra podem chegar à cifra recorde de US$ 1 trilhão, o correspondente a cinco vezes o Produto Interno Bruto (PIB) da Ucrânia. Como se vê, os custos financeiros e humanos são tão grandiosos quanto o ódio que alimenta a beligerância entre países, seja por questões históricas, econômicas, territoriais ou religiosas, ou mesmo pela estupidez de alguns governantes.
A par dessas guerras declaradas, noticiadas praticamente em tempo real pelas redes de comunicação mundiais, uma outra guerra se desenrola: a da informação não profissional, com batalhas de narrativas travadas por simpatizantes de ambos os lados, cada qual tentando impor a sua versão, tomada como verdade absoluta.
O Brasil, felizmente, não se envolve em conflitos bélicos desde a Segunda Grande Guerra. República federativa que possui a democracia em seu DNA, tem no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 “a instituição de um estado democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos fundados na harmonia social e comprometida na ordem pacífica, interna e internacional”.
Mas como explicar, no âmbito internacional, um país democrático tem entre seus principais aliados os países do Brics que a cada dia se expande com a inclusão de nações avessas à democracia, além de privilegiar e acolher países com regimes totalitários, como Irã e Arábia Saudita?
Há, ainda, outro dilema a ser considerado: o de um país que é pacífico, porém não enxerga suas guerras internas, que estão sendo perdidas por se ignorar suas feridas e suas vítimas. Elas existem, embora o Brasil figure entre a 8ª e 9ª posição entre as maiores economias do mundo, possua a 5º maior extensão territorial entre os países e abrigue a 7ª maior população do planeta. Um país gigante e cheio de riquezas, que sempre alimenta o sonho de ser protagonista mundial embora esteja longe de oferecer qualidade de vida ao seu próprio povo.
A primeira guerra interna perdida pelo Brasil é o trânsito. Temos o segundo pior trânsito do mundo, atrás apenas da Rússia (o “R” dos Brics), de acordo com pesquisa realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em parceria com o site britânico The Market, publicada em maio de 2023.
A violência do trânsito brasileiro causa 47 mil mortes por ano, o correspondente a toda a população de Morrinhos (GO), Sena Madureira (AC), Capão Bonito (SP) e Campo Maior (PI). Número que pode ser ainda maior se considerados os óbitos posteriores de feridos, que não integram de imediato as estatísticas oficiais.
As razões são conhecidas: estradas e vias públicas construídas sem os padrões de segurança e muitas vezes com manutenção precária, desrespeito aos limites de velocidade, motoristas dirigindo sob efeito de álcool, enfim, uma somatória de fatores envolvendo fiscalização precária, governos incompetentes e maus governantes.
Além das vidas perdidas, há outra questão importante: estudos apontam que o país perde cerca de R$ 50 bilhões por ano com os acidentes de trânsito, considerando-se a queda de produção das vítimas e os custos das internações e tratamentos hospitalares.
O número de homicídios é a segunda guerra interna perdida. Em números absolutos, o Brasil foi o país com maior número de assassinatos em 2022, total de 47,5 mil vítimas fatais. Embora tenha havido uma ligeira queda no ano passado em relação à série histórica, o país continua perdendo um número absurdo de vidas anualmente para a violência urbana, principalmente jovens e negros.
O problema é igualmente sério em números absolutos. O Brasil é o quinto país do mundo com maior número de homicídios por grupo de 100 mil habitantes. Agrava a situação o baixo índice de elucidação desse tipo de crime, que não chega a 10% dos casos.
O Brasil ainda está perdendo a guerra contra as drogas, que destroem famílias e estimulam a violência. O país convive, sem resposta adequada, com facções criminosas atuantes em todos os estados da Federação, que disputam os pontos de venda e o mercado de armas, com transações que atingem bilhões de reais, e impõem suas regras e vontades, controlando territórios, subjugando a população local, sempre com ameaças de violência e morte, inclusive à luz do dia.
O país não foi capaz de deter o crescimento dessas facções, que controlam o crime mesmo de dentro dos presídios e já ostentam ramificações internacionais. Os governos das últimas décadas falharam na fiscalização das fronteiras terrestres – mais de 16 mil km -, marítimas e fluviais. Além disso, há abundância de portos e aeroportos clandestinos, localizados onde o Estado não chega.
O Brasil também está perdendo a guerra da violência contra as mulheres, fenômeno crescente a despeito do endurecimento da legislação, notadamente com a Lei Maria da Penha e o advento das medidas protetivas.
O problema torna-se ainda mais grave porque o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que as mulheres já são 51,1% da população brasileira. O país tem 6 milhões de mulheres a mais do que homens, porém segue vitimando sua população feminina.
A quarta edição da pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, permite estimar que cerca de 18,60 milhões de mulheres foram vítimas de violência em 2022. De forma simples e objetiva, significa que o número de brasileiras vitimizadas é suficiente para lotar, todos os dias, um estádio de futebol com capacidade para 50 mil pessoas (50.000 x 365 dias).
Mulheres negras de baixa escolaridade, com filhos e divorciadas são a maioria nessa triste estatística. A realidade é dura e cruel: a incidência da violência contra a população feminina no Brasil é 33,4% maior que a média global, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Uma quinta guerra interna também tem desfecho de derrota: as desigualdades regionais e sociais que se acentuam, sem expectativa de reversão. As discrepâncias são abissais. Um único estado (São Paulo), ocupando apenas 2,92% do território nacional, abriga 21,16% da população brasileira e produz 31,56% do PIB brasileiro. Enquanto isso, em 82,39% do território nacional (19 estados e o Distrito Federal), com quase metade (45,71%) da população brasileira, são produzidos apenas 29,77% do PIB.
A renúncia fiscal federal, que segundo a Constituição deve ser concedida para atenuar as desigualdades regionais, nos governos das últimas três décadas, paradoxalmente tem destinado 63% a 65% do valor renunciado para beneficiar as regiões mais desenvolvidas do país. Trata-se de um volume enorme de recursos, entre 4,5% a 5,0% do PIB, ou seja, R$ 470 bilhões a R$ 530 bilhões, dinheiro que faria muita diferença para o desenvolvimento das regiões do norte e nordeste.
Os reflexos disso entre os cidadãos é evidente. Em 2022, a renda média dos brasileiros habitantes das regiões norte e nordeste foi de 31% a 35% menor do que a renda média nacional. Quando se fala em expectativa de vida, o quadro também é desolador. De acordo com o Censo 2022, os habitantes da Amazônia nascem com a expectativa de viver 5,5 anos a menos que os brasileiros de outras regiões.
As desigualdades se acentuam pelas ações do próprio governo, como fez muito recentemente agindo para que o Supremo Tribunal Federal (STF) retirasse de pauta a sequência do julgamento da ação para que a remuneração do FGTS seja feita por índice menos nocivo ao trabalhador.
Faz o governo o papel de Hobin Wood às avessas porque tudo o que realiza é feito com recursos dos tributos pagos pela população somados aos endividamentos tomados junto ao Sistema Financeiro internacional e doméstico, em grande maioria a custo de Selic. Por outro lado, obras de habitação e saneamento são financiadas pelo trabalhador via subsídios do FGTS, remunerados abaixo da inflação. Há evidente injustiça e fomento aos privilégios que já são muitos no país.
O Brasil nada tem produzido de efetivo para a redução de todos esses índices vergonhosos a nível mundial. É um resultado pífio para a abundância de leis, discursos em profusão, aumento de ministérios e promessas fáceis em campanhas eleitorais.
Nós, brasileiros, perdemos para nossas guerras internas quase 100 mil compatriotas todos os anos, o que requer uma solução humanitária urgente. É hora de buscar caminhos, com humildade para reconhecer os erros e aprender com eles, com coragem e transparência, e sem perder tempo buscando culpados. Afinal, os culpados somos todos: governos, os Três Poderes, classe política, sociedade civil e parcela importante da mídia.
O país dispõe de recursos financeiros para mudar essa realidade. Mas isso não basta. É preciso definir uma pauta mínima, começando por cumprir a Constituição, hoje ignorada, em seus artigos 1º (especialmente o inciso III), 3º (incisos III e IV), 5°, 6º, 43 e 165 (parágrafos 6° e 7°), que tratam dos valores da nação, das garantias e direitos fundamentais dos cidadãos, e da redução das desigualdades.
Hoje o Brasil busca o papel de protagonista na solução das guerras internacionais enquanto é coadjuvante nas próprias guerras internas. É necessário inverter essa lógica. Não se trata, obviamente, de olhar somente para o próprio umbigo – lembrando o antigo ditado popular -, mas de zelar prioritariamente por nossa população, sofrida e quase sem esperança.
É sempre bom lembrar o que disse o ex-primeiro ministro britânico Neville Chamberlain (1869-1940): “Na guerra, seja qual for a parte que se diga vencedora, não há ganhadores: todos são perdedores”.
Por Samuel Hanan, ele é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.