O presidente Lula conhece bem as dificuldades para a montagem de uma base de apoio no Congresso. Em seu primeiro mandato, elas resultaram no mensalão, esquema de compra de votos de parlamentares com recursos desviados dos cofres públicos, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). Outros mandatários também enfrentaram problemas porque nesse tipo de negociação a afinidade ideológica ou programática vale pouco, importando mais o que o governo de turno tem a oferecer aos partidos em troca de ajuda para aprovar seus projetos prioritários. É por isso que o presidencialismo de coalizão brasileiro volta e meia é chamado, entre ironia e cinismo, de presidencialismo de cooptação. Forma a base quem paga por ela — e a base tem tamanho compatível ao da contrapartida. Com experiência de sobra, Lula não pretende mudar as regras do jogo em seu terceiro mandato. Diante de um Legislativo que ganhou força na gestão de Jair Bolsonaro, ao abocanhar fatias maiores do Orçamento da União por meio das emendas de relator, o petista apostará no pragmatismo para formar maiorias na Câmara e no Senado. Seu plano é unir a esquerda, atrair os moderados ansiosos por uma benesse oficial e isolar os radicais de direita.
As negociações para a obtenção de apoio no Congresso começaram tão logo Lula foi eleito, em outubro do ano passado, e se arrastam desde então, sem conclusão à vista. Essa situação só não resultou em problemas para o governo porque seus projetos ainda não foram submetidos a voto e porque, de acordo com ministros, a agenda legislativa do Palácio do Planalto é enxuta e, em seus pontos principais, conta com a boa vontade dos congressistas, inclusive os de oposição. Em 2023, as prioridades de Lula são a reforma tributária e o novo marco fiscal a ser anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Até aqui, enquanto são apenas conceitos abstratos, as duas iniciativas não enfrentam resistência de deputados e senadores, mas, como o diabo mora nos detalhes, a dúvida é se essa postura se manterá quando os textos começarem a tramitar e cada um de seus artigos despertar reações de interesses diversos, de governadores, empresários e setores produtivos. Em governos anteriores, essas reações interditaram a tramitação de diferentes propostas de reforma, sempre elogiadas e sempre engavetadas.
Numa tentativa de superar esse tabu, Lula promete simplificar o sistema de cobrança de impostos, sem aumentar a carga tributária. “A reforma tributária não é um tema que divide o governo e a oposição”, diz um ministro, acrescentando que o tema está maduro para aprovação. O restante da agenda do governo se restringe basicamente a medidas provisórias. No caso da MP que reestruturou a máquina pública, a poderosa bancada ruralista não concorda com a transferência da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) do Ministério da Agricultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, em tese mais suscetível a movimentos sociais e menos simpático a grandes produtores. Nas conversas com parlamentares, o governo tem prometido que o Ministério da Agricultura terá um assento no conselho de administração da Conab e será parceiro do Desenvolvimento Agrário na definição de políticas de abastecimento e de preços mínimos. No Palácio do Planalto, há todo um empenho para mostrar que o governo tem tentado pavimentar o caminho para a aprovação dos projetos por meio do debate de mérito das medidas, mas essa é só uma parte da estratégia. A outra parte se desenrola na mesa de negociação, com a promessa de distribuição de cargos e verbas do Orçamento.
Ao compor sua equipe, Lula, ciente de que a esquerda sozinha não tem maioria, deu três ministérios para cada uma das seguintes legendas: MDB, PSD e União Brasil. Não foi o suficiente para aplacar a vontade de participação no governo dos integrantes do Centrão. Dono da terceira maior bancada na Câmara, o União Brasil, por exemplo, cobra mais espaço para seus deputados. Preterido em um cargo de ministro, o líder da sigla, Elmar Nascimento (BA), tanto cobrou que conseguiu o compromisso de manter um afilhado político no comando da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), estatal que se tornou queridinha das emendas de relator na gestão Bolsonaro. Também preterido na Esplanada, o Avante, sigla nanica que apoiou Lula na eleição, recebeu a promessa de manter uma diretoria no Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs), conhecido por sua capilaridade e peso eleitoral nos rincões. Os deputados aguardam com ansiedade a distribuição de cargos de segundo e terceiro escalões. Na Câmara, diz-se que o estado atual é de “compasso de espera”.
Se o rateio for realizado tal qual prometido pelos articuladores políticos de Lula, até parlamentares do PL, o partido de Bolsonaro, ajudarão a aprovar os projetos considerados prioritários pelo governo. O mesmo vale para o PP, comandado pelo senador Ciro Nogueira, ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro. “É natural essa pressão da Câmara para obter mais espaço”, afirma um ministro. “Há tensão porque você teve um deslocamento de poder do Executivo para o Legislativo na gestão Bolsonaro, que entregou tudo para o Congresso”, acrescenta, citando como exemplos do tal deslocamento as notórias emendas de relator. Lula também está entregando cargos e verbas orçamentárias. O governo fez um acordo com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um dos antigos senhores das emendas de relator, para que parte das verbas dos ministérios seja direcionada aos deputados novatos, que decidirão onde cada centavo será aplicado. A promessa é de que cada um dos 291 deputados estreantes receba um quinhão de cerca de 10 milhões de reais, totalizando 2,9 bilhões de reais. Essa dinheirama certamente ajudará a azeitar a engrenagem do presidencialismo de coalizão brasileiro.
Também deve contribuir para a formação de uma base governista a postura do presidente em relação às suspeitas envolvendo seus auxiliares. O caso do ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil-MA), é emblemático. Deputado de baixo clero, ele é suspeito, conforme noticiou o jornal O Estado de S. Paulo, de direcionar verba pública para beneficiar uma propriedade de sua família e ocultar patrimônio. Por enquanto, não há notícia de que tenha sido cobrado pelo Planalto a prestar esclarecimentos. Longe disso. Como disse certa vez Lula em seu segundo mandato, as denúncias saem na urina e, portanto, não abalam o governo. Apesar de traçar um cenário otimista para a sua relação com o Congresso, o Executivo sabe que sempre haverá armadilhas pelo caminho, algumas delas reais, outras colocadas apenas para encarecer o preço de certas transações. Parlamentares alinhados a Bolsonaro conseguiram reunir assinaturas para a criação de uma CPI destinada a investigar os ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro. Eles querem vender a tese de que Lula se omitiu na ocasião, deixando a quebradeira correr solta para se beneficiar politicamente e prejudicar Bolsonaro.
Ainda não é certo que a CPI sairá do papel. Seu requerimento tem de ser lido numa sessão plenária do Congresso, o que depende da boa vontade do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), chefe do Poder Legislativo e aliado de Lula. Além disso, parlamentares que assinaram o pedido de comissão ainda podem recuar, o que é bastante comum, ainda mais quando o governo empenha mundos e fundos para fazê-los mudar de ideia. Por ordem de Lula, os articuladores políticos têm negociado diretamente com Lira e Pacheco, além de líderes dos partidos e das frentes parlamentares. A ideia é manter um diálogo permanente entre as partes, deixando de fora apenas os radicais de direita. O governo diz ter um acerto para impedir que bolsonaristas notórios, como Bia Kicis (PL-DF) e Ricardo Salles (PL-SP), ocupem cargos de destaque nas comissões do Congresso. Com exceção deles, o Planalto está disposto a negociar com qualquer parlamentar. A equipe de Lula considera possível conseguir até metade dos votos das bancadas do PP e do PL, cujos políticos mais moderados não gostam de fazer oposição e não sabem viver longe do governo — de qualquer governo, especialmente daqueles que sabem negociar apoio com “bons argumentos”.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831