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quarta-feira 26 de agosto de 2020 às 08:47h

A controversa lei alemã que inspira projeto de lei das Fake News na Câmara

DESTAQUE, NOTÍCIAS


O controverso PL das Fake News — projeto de lei em debate no Congresso para regular o funcionamento das redes sociais com objetivo de conter a circulação de informações falsas — tem parte do seu conteúdo inspirada em uma legislação aprovada na Alemanha em 2017.

Conhecida pela abreviação NetzDG (de Neztdurchsetzungsgesetz, Lei de Fiscalização da Rede), essa lei já provocou a denúncia de milhões de conteúdos com teor considerado criminoso na Alemanha, em redes sociais como Twitter e YouTube — e uma quantidade bem menor no Facebook e no Instagram (que pertence ao Facebook), que não forneceram atalhos para mecanismos de denúncia nas páginas suspeitas, o que levou a empresa de Mark Zuckerberg a ser multada em 2 milhões de euros (cerca de R$ 13,2 milhões), sob acusação de não estar aplicando corretamente a legislação.

Além da obrigação de remover conteúdos “claramente ilegais” em até 24 horas, vigente desde janeiro de 2018, uma revisão da legislação aprovada em junho determinou que as plataformas passem a reportar à polícia federal alemã (BKA) os itens excluídos, para que possam ser investigados.

Assim como ocorre hoje no Brasil, a lei alemã foi duramente criticada durante a apreciação no Parlamento por opositores que viam nela graves ameaças à liberdade de expressão e à privacidade dos usuários. Apesar disso, a NetzDG foi adotada em resposta à crescente preocupação com discurso de ódio na internet vindo, por exemplo, de grupos neonazistas e xenófobos. Já no Brasil a principal motivação para a proposta de lei é conter a desinformação.

Tendo sido a primeira regulação mais dura sobre redes sociais em um país democrático, a NetzDG se tornou referência pelo mundo. Segundo levantamento do centro de pesquisa dinamarquês Justitia, ao menos 13 países e a União Europeia já adotaram leis inspiradas na alemã, sendo cinco nações classificadas pela organização americana Freedom House como “não livres” no campo da internet: Honduras, Venezuela, Vietnã, Rússia e Belarus.

“Estados autoritários estão copiando e colando leis não liberais elaboradas por democracias liberais. Enquanto o objetivo inicial da Alemanha era conter o ódio online, a NetzDG forneceu um plano de censura na internet que está sendo usado para combater a dissidência e o pluralismo”, acusa Jacob Mchangama, Diretor Executivo da Justitia e coautor do relatório.

Na Venezuela, por exemplo, a “Lei contra o Ódio, pela Coexistência Pacífica e Tolerância” foi aprovada no final de 2017 e prevê pena de até 20 anos para quem manifestar discurso de ódio. Segundo a organização internacional Centro para Proteção dos Jornalistas (CPJ), essa foi uma das acusações impostas sobre o repórter fotográfico Jesus Medina Ezaine, que cobria a crise de saúde no país. Ele foi solto em janeiro após ficar preso sem julgamento por 16 meses.

NetzDG prevê multa de até 50 milhões de euros

Um dos pontos mais polêmicos da lei alemã é a obrigação de remover ou bloquear conteúdo que seja “claramente ilegal” em até 24 horas após o recebimento de uma denúncia. Isso inclui crimes como propaganda de “organizações inconstitucionais” (grupos neonazistas ou terroristas, por exemplo), encorajamento ou preparação de ato violento que ameace o Estado, pornografia infantil, insulto, difamação de pessoas ou organizações religiosas, entre outros. Quando a ilegalidade não for tão explícita, o limite para análise e exclusão é de sete dias.

As empresas também têm que produzir relatórios de transparência semestrais e estão sujeitas a multa de até 50 milhões de euros caso desrespeitem a lei.

Os relatórios do YouTube e do Twitter consultados pela BBC News Brasil mostram que as duas plataformas juntas já receberam mais de 3,3 milhões de denúncias sobre conteúdos que seriam ilegais segundo a NetzDG.

O YouTube apagou 346.830 itens, 24% das 1,868 milhão de denúncias recebidas até junho de 2020. O Twitter, por sua vez, deletou 235.683 conteúdos, 12,6% do total de 1,436 milhão de queixas até 2019 (dados deste ano ainda não foram divulgados).

Enquanto essas duas empresas fornecem atalhos para o mecanismo de denúncia em cada conteúdo compartilhado pelos usuários, o Facebook criou uma página separada para isso dentro da plataforma, o que dificulta o processo. Isso se reflete no número bem mais baixo de itens denunciados (14.114) e removidos (4.431) desde janeiro de 2018.

Por isso, a empresa foi multada pelo governo em 2 milhões de euros (cerca de R$ 13 milhões) em 2019, mas recorreu. Na ocasião, o Facebook disse, por meio de um porta-voz, que “trabalha duro” para remover discursos de ódio de forma rápida e eficaz, e argumentou que seus relatórios estão de acordo com a NetzDG, mas que falta “clareza” à lei.

Pressionada em todo o mundo, a plataforma têm tomado medidas próprias. No início de agosto, o Facebook anunciou que excluiu 22 milhões de posts com discurso de ódio globalmente no segundo trimestre de 2020, além de ter deletado 1,5 bilhão de contas falsas.

Remoções exageradas?

Quando a NetzDG foi proposta, havia um receio de que causaria remoção exagerada de conteúdo (overblocking) pelas empresas para evitar as altas multas. Ativistas e estudiosos que acompanham o efeito da lei têm apontado certa dificuldade para medir se isso ocorreu e se ela foi eficiente no combate ao discurso de ódio devido à falta de padronização e de maiores detalhes nos relatórios produzidos.

Outro fator que dificulta o diagnóstico é o fato de as plataformas terem adotado o padrão de analisar os conteúdos denunciados dentro da NetzDG primeiro segundo suas regras privadas, que, em geral, já proíbem incitação à violência, exploração sexual, bullying, entre outros comportamentos.

Caso o item denunciado esteja em desacordo com esses termos de uso, as empresas dizem em seus relatórios que o apagam globalmente. Já se o conteúdo estiver dentro das regras da plataforma, mas for considerado por suas equipes ilegal segunda a NetzDG, é removido apenas para os usuários na Alemanha. Os relatórios, porém, não especificam qual desses motivos levou à remoção.

Para o especialista em leis da internet Matthias C. Kettemann, consultor do Parlamento Alemão e pesquisador sênior do Instituto Leibniz de Pesquisa de Mídia, a NetzDG “provou seu valor” ao concretizar a responsabilidade dos provedores em lidar com reclamações de conteúdo.

À BBC News Brasil, ele disse não haver evidência de “amplo overblocking” por causa da lei e destacou como efeito positivo os investimentos das empresas para atender às exigências de rápida análise das queixas. O último relatório do YouTube, por exemplo, diz que há 66 profissionais na “equipe NetzDG”, revisando os conteúdos denunciados. Kettemann reconhece, porém, que “não é possível dizer se há mais ou menos discurso de ódio nas redes ‘alemãs'”.

“Muito mais está sendo excluído, mas isso não se baseia apenas na NetzDG, mas também nos termos de serviço (das próprias plataformas) que agora são mais sensíveis às questões de direitos humanos”, ressalta.

Outro ponto delicado da lei, nota Kettemann, é colocar decisões muitas vezes complexas — como avaliar se uma manifestação configura ou não o crime de insulto, o que pode levar tempo nas esferas judiciais — na mão dos analistas de conteúdo das redes sociais e ainda impor um curto espaço de tempo para isso. Por isso, críticos da NetzDG dizem que a lei transforma as plataformas “em xerifes online”. A questão fica ainda mais complexa agora que as empresas terão que enviar esses conteúdos e dados dos usuários à polícia federal alemã.

“Geralmente, um grande banco de dados governamental com conteúdo que ainda não foi considerado ilegal é um pesadelo para a proteção de dados”, reconhece Kettemann.

Assassinatos extremistas influenciaram no endurecimento da lei

O endurecimento da lei foi influenciado por crimes que chocaram a Alemanha, como o assassinato do político alemão Walter Lübcke, favorável à abertura do país para mais imigrantes, por dois xenófobos há cerca de um ano. Outro caso, em outubro de 2019, foi o ataque a uma sinagoga por um antissemita que resultou na morte de duas pessoas — ele divulgou sua ação em tempo real em uma plataforma muito usada na transmissão de jogos online (Twitch).

Para a consultora legislativa Jana Gooth, porém, as mudanças não aumentarão a eficiência no combate ao discurso de ódio e atos extremistas. Assistente jurídica da parlamentar Alexandra Geese, representante do Partido Verde alemão no Parlamento Europeu, Gooth diz que o endurecimento da lei ocorreu sem amplo debate, devido à pandemia de coronavírus, e pode ser considerado inconstitucional pelo Judiciário.

Uma lei similar a NetzDG recentemente aprovada na França foi em boa parte anulada pela Suprema Corte francesa.

“Considero a revisão de junho da NetzDG preocupante porque ela não aborda de forma eficaz nenhum dos desafios que enfrentamos quando se trata de conteúdo ilegal ou prejudicial online, mas coloca em risco direitos cada vez mais fundamentais, como o direito à proteção de dados, ao criar um banco de dados policial excessivamente centralizado”, disse à BBC News Brasil.

Na visão de Gooth, a própria lógica de como as plataformas operam incentiva amplificação de discursos ilegais ou danosos, porque os algoritmos privilegiam conteúdos que despertam “emoção” e engajamento nos usuários, com objetivo de mantê-los mais tempo online e expostos a peças de publicidade direcionada. Ela diz que ainda há poucos estudos sobre esse “ecossistema”, devido à falta de transparência das plataformas.

“As plataformas são muito relutantes em conceder aos pesquisadores o acesso necessário para realizar pesquisas”, afirma ao defender o acesso direto a dados e algoritmos por meio de APIs (as instruções e padrões de programação para acesso a um aplicativo).

Como a NetzDG influencia o PL das Fake News

O projeto de lei brasileiro no momento está em debate na Câmara dos Deputados, onde pode passar por modificações. O texto aprovado no Senado em junho tem alguns pontos similares à NetzDG e outros, inovadores, caso do polêmico artigo 10, que prevê que aplicativos de mensagem como o WhatsApp guardem por três meses dados de compartilhamento (não o conteúdo em si, mas quem o transmitiu e recebeu, por exemplo) quando a informação circular em ampla escala.

Entre os pontos claramente inspirados na legislação alemã está a previsão de que a lei brasileira não atinja empresas jornalísticas e se aplique apenas a plataformas com mais de 2 milhões de usuários no país — o PL das Fake news, porém, inclui aplicativos de mensagens, enquanto a lei alemã afeta apenas redes sociais.

O texto aprovado no Senado brasileiro não obriga empresas a deletar postagens por seu conteúdo como a lei alemã, mas determina que elas devem tirar do ar contas inautênticas (que usam identidade falsa para enganar outros usuários) e contas automatizadas que não estejam abertamente identificadas como robôs.

A atual versão do PL segue o exemplo da NetzDG ao prever a possibilidade de multas para as empresas (de até 10% do faturamento no Brasil) em caso de descumprimento da legislação e também ao obrigá-las a produzir relatórios de transparência trimestrais.

Diferentemente da lei alemã, o PL das Fake News por enquanto não estabelece um prazo para a exclusão das contas inautênticas e automatizadas. Isso, no entanto, poderá ser estabelecido em normas infralegais que estabelecerão as regras e diretrizes para aplicação da lei, explicou à reportagem o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), que está coordenando o debate do projeto na Câmara.

A ideia é que essa regulamentação seja estabelecida pelo Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, órgão subordinado ao Congresso cuja criação está prevista no PL. Ele deverá também criar diretrizes para uma autorregulação das empresas, o que é chamado de “autorregulação regulada”.

Esse princípio também é inspirado no direito alemão, explica o jurista Ricardo Campos, professor na Universidade Goethe, em Frankfurt e diretor do LGPD (Legal Grounds for Privacy Design), instituto voltado à proteção de dados.

‘Boas práticas’ X Leis duras

Campos e outros integrantes do LGPD estão em constante contato com parlamentares envolvidos na elaboração do PL das Fake News, propondo ajustes no texto. À BBC News Brasil, ele disse que “alguns pilares do projeto de lei brasileiro são apoiados nos pilares na lei alemã”, mas considera que a influência principal está na essência do PL das Fake News, ao fixar obrigações claras e prever punições às plataformas.

Segundo o professor, a NetzDG foi adotada como reação a uma regulação da União Europeia que se mostrou ineficaz ao estabelecer recomendações de “boas práticas” às empresas, mas sem impor medidas.

“Na Alemanha, a classe política e a sociedade civil perceberam que criar catálogo de boas práticas é ‘conversa pra boi dormir’. As plataformas continuam sendo regidas pelo princípio do mercado”, afirma Campos.

A avaliação não é consenso entre juristas brasileiros. Para Fabrício Polido, professor de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é preciso cautela ao “importar” leis de outros países com realidades distintas da brasileira.

À BBC News Brasil, ele manifestou preocupação sobre como o PL das Fake News, caso aprovado, poderá ser aplicado de forma autoritária, associado à Lei de Segurança Nacional, legislação da época da Ditadura Militar que segue em vigor no Brasil e tem sido acionada para investigar críticos do presidente Jair Bolsonaro, como o colunista do jornal Folha de S.Paulo Helio Schwartsman.

“A lei alemã dá um verniz de legitimidade ao legislador (brasileiro) como se ele pudesse confiar nesse modelo, mas a NetzDG não está pacificada na Alemanha. Ela é vista como um ponto fora da curva”, critica.

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