Um vendaval que atingiu a capital paulista há cerca de dois anos levou prejuízo para o futebol de várzea do entorno de Vila Maria, na Zona Norte de São Paulo. No campo Fernão Dias, em Jardim Julieta, a parte de trás do alambrado cedeu com o mau tempo. Agremiações locais se juntaram para pedir reformas, e o meio encontrado para serem ouvidas foi um vereador atuante na região e que costuma mandar emendas para o esporte e outras atividades culturais, como blocos de carnaval de rua. A reportagem é de Hyndara Freitas e Samuel Lima, do O Globo.
Em abril, um time da região jogou contra o time de másters do Corinthians para inaugurar o gramado sintético e o novo alambrado. Fardado com o uniforme do Grêmio Fernão Dias, o vereador Danilo do Posto de Saúde (Podemos), ex-servidor público municipal eleito pela primeira vez em 2020, recebeu os agradecimentos em forma de faixas, mensagens nas redes sociais e, poucos meses depois, como apoio em sua campanha. O aliado do prefeito Ricardo Nunes (MDB) saltou de 19.024 para 58.676 votos em quatro anos e liderou em Vila Maria.
Episódios como esse demonstram como a máquina pública privilegia quem está mais próximo do poder e consegue manter diálogo com as comunidades, o que por vezes se sobrepõe às ideologias e beneficia partidos mais fisiológicos, como os do Centrão. Francisco Pinto, um dos diretores do Grêmio, conhecido como Chicão, reforça o diagnóstico. Ele contou que os vereadores costumam ser o primeiro canal dos moradores com a prefeitura, e quem mais atende à região costuma ganhar a preferência das comunidades na hora da eleição, mais até do que pelos seus partidos ou por sua orientação política.
— Existem pessoas que têm uma ideologia mais definida, de direita ou de esquerda, mas muitas vezes é o interesse ali que fica sendo necessário resolver. A ideologia não vai fazer com que você resolva isso, pelo menos não num curto espaço de tempo — diz.
As eleições expuseram mais uma vez a força de quem já ocupa os espaços públicos em mobilizar os eleitores. O índice de reeleição foi o maior da história: 2.461 candidatos entre 3.006 que tentaram um novo mandato nas prefeituras foram bem-sucedidos, o equivalente a 82%. O percentual é ainda maior entre as cidades mais contempladas com as “emendas Pix”, transferências diretas definidas por deputados federais e senadores. Esses recursos são distribuídas pelo governo federal e abastecem o caixa das prefeituras, sem uso predefinido. Nesse caso, a taxa chega a quase 94%.
Fenômeno urbano
Além do desequilíbrio na concorrência, esses números ajudam a explicar outro fenômeno evidenciado no pleito: o enfraquecimento da esquerda nas periferias. Em São Paulo, por exemplo, a vitória de Nunes ocorreu em quase toda a cidade, inclusive em bairros em que tradicionalmente predominavam os votos a candidatos do PT, como Grajaú, Parelheiros, Perus, Guaianases e Cidade Tiradentes.
Gerson Oliveira é presidente da Associação Azarias, que oferece cursos de música para crianças e adolescentes em Perus e gere equipamentos públicos municipais e estaduais, como unidades do Bom Prato e creches. Sempre atuando com projetos sociais, conta que testemunhou a mudança no perfil de voto no extremo da Zona Noroeste, que tradicionalmente votava com a esquerda e agora elegeu Nunes, além de ter dado votação massiva para vereadores de siglas como o MDB.
— Houve uma falta de conversa da esquerda com a periferia nos últimos anos. O pessoal aqui sempre gostou muito da (Luiza) Erundina, mas a esquerda foi perdendo conexão com a região. O governo (Fernando) Haddad foi difícil para nós. Já no governo do Bruno Covas e do Ricardo (Nunes), teve obra que diminui enchente, foi inaugurada uma UPA, um Centro Especializado em Reabilitação (CER). Agora, a subprefeitura tem um grupo no WhatsApp com líderes comunitários, representantes do comércio, síndicos, representantes de ONGs, tem reunião toda semana, um canal direto — conta.
No mesmo bairro, a comunidade cultural Quilombaque tem uma postura de oposição à gestão Nunes, mas seus integrantes admitem que a direita e o Centrão têm feito “o trabalho de base que a esquerda fazia antes”.
— O trabalho de base da esquerda perdeu força, e quem faz isso são as igrejas evangélicas. O (Guilherme) Boulos vem desse campo progressista, mas o PSOL não tem base na periferia. Enquanto isso, o (Fábio) Riva (vereador da base de Nunes) e os deputados estão aqui colados com a quebrada, reformam os campinhos, dão cesta básica — explica Cleiton Ferreira, cofundador da Quilombaque.
Na Zona Sul de São Paulo, basta andar alguns minutos pela Estrada do M’Boi Mirim, do Capão Redondo ao Jardim Ângela, para ver dezenas de faixas agradecendo ao prefeito reeleito e à família do presidente da Câmara Municipal, vereador Milton Leite (União), pelo asfalto novo, pela reforma no campo de futebol e pela duplicação da avenida que ainda não foi feita.
Ao longo de todo o ano e não apenas na campanha eleitoral, lideranças ligadas ao clã distribuem cestas básicas, promovem eventos ligados ao samba e organizam campeonatos esportivos. Nas páginas nas redes sociais de influenciadores das zonas mais afastadas, foram listados motivos para que os moradores de determinado bairro votassem em Nunes e nos parlamentares de sua base. Um exemplo é uma página de noticias do Jardim Sinhá, que fica na região do Sapopemba, Zona Leste, que entre os argumentos para apoiar a reeleição do prefeito relacionava a reforma e a inauguração de quadras, obras de contenção de enchentes, melhorias em um campo de futebol e a construção de uma UPA.
Pragmatismo
Entre líderes comunitários já há quem defenda abertamente o Centrão. Em entrevista recente ao Intercept, o ativista social Isaac Faria contou que era militante do PT, mas deixou o partido e se aproximou da família Leite por pragmatismo. Ele ganha R$ 20 mil por mês para colocar no ar um podcast em que fala da região onde mora, o “fundão” da M’Boi Mirim, e costuma fazer vídeos com drones mostrando obras da prefeitura.
Faria reiterou as informações ao jornal O Globo e disse que o programa é bancado por doações de empresários apresentados por políticos do clã. Disse ainda que se decepcionou com o PT desde a gestão Haddad e que os seus pedidos de melhorias na periferia agora são atendidos pelo governo, seja por conteúdos divulgados nas suas redes sociais, seja pelo contato com assessores do gabinete do presidente da Câmara. Fez elogios, por exemplo, a uma emenda de R$ 5 milhões do deputado estadual Alexandre Leite (União), filho do vereador, que viabilizou a construção de uma UPA.
— Pode até ter diálogo, mas não tem efetividade — afirma Faria a respeito da presença de vereadores do PT e da esquerda na região que chegou a ser conhecida como “Tattolândia”, em referência a políticos petistas da família Tatto.
Na mesma região, Jailson Silva, que criou o movimento SOS Transportes M’Boi Mirim há mais de dez anos, reclama que a atual gestão não resolveu o principal problema daquela área: a mobilidade urbana. Ele credita a isso a derrota de Nunes na Zona Eleitoral do Piraporinha, uma das poucas onde Boulos saiu vitorioso. Mas não os vereadores do Centrão: Leite conseguiu eleger Silvão e Silvinho, seus apadrinhados.
Para Silva, a esquerda perdeu força na região porque o clã Leite tem lideranças regionais atuando o tempo todo. Na pandemia, por exemplo, quando a prefeitura distribuiu cestas básicas, foram estas as lideranças que as entregaram nas mãos dos moradores.
— Essas lideranças estão aqui para as pessoas não esquecerem, e as plaquinhas também lembram o tempo todo, “fulano quem fez” — diz.
A concentração de poder rende até briga por emendas parlamentares.
— O Carlos Zarattini (deputado federal do PT), por exemplo, ia colocar uma emenda para a UPA do Vera Cruz, mas deu problema porque os Leite também queriam mandar. Aí eles entraram num acordo. Para a população, acaba sendo uma briga boa, o importante é ter o recurso — pontua Silva.
O caso ocorreu em 2021 e, no fim das contas, o deputado federal do União Brasil mandou recursos para ampliar e reformar a UPA, e o petista liberou emendas para a UBS Cidade Ipava, também na região.