O fascínio que envolve o vinho não tem limites. De um consumo habitual, despretensioso, começa a crescer o interesse pelo tema, conforme excelente reportagem de Jorge Lucki, do jornal Valor, que leva de forma consistente e irreversível da publicação, a namorar padrões de vinhos cada vez mais elevados. Daí vem a expectativa de provar um rótulo mítico, experiência que uma vez concretizada desencadeia a necessidade de repeti-la com outros vinhos do mesmo patamar e, passo seguinte, a vontade de tê-los em casa, sempre em maior número. Muitos se contentam em permanecer nesse estágio, privilegiado e muito prazeroso, mas há quem vá mais além: ter seu próprio vinhedo e com ele um rótulo só seu.
Existem vários exemplos de aventuras do gênero no centro-sul e Sudeste do Brasil, algumas de pequenas proporções, como as de empresários que resolveram, quase como brincadeira, cultivar videiras em suas fazendas, mesmo cientes de que, a despeito do capricho na implantação, as condições não permitiam fantasiar com grandes vinhos. Era esse, ao menos, meu pensamento quando cerca de 20 anos atrás, consultado informalmente por uma amiga da Secretaria do Planejamento do Estado de São Paulo sobre a viabilidade de implantar um projeto de fomento à vitivinicultura no interior, me mostrei bastante cético, frustrando suas tão bem-intencionadas expectativas.
Embora eu tenha também aventado a necessidade de estudos mais avançados sobre rentabilidade e operacionalização, comparando com outras culturas praticadas nessas regiões — café tem comprador e se vende ensacado com facilidade, enquanto vinho envolve vinificação (instalações e expertise) e estrutura de comercialização —, o entrave era, a meu ver, a impossibilidade de se atingir um bom padrão de qualidade. Não valia a pena perder tempo e recursos para produzir vinhos de garrafão, produzido com uvas de mesa, tipo isabel e niágara.
A questão é climática: vivemos num país tropical, que se caracteriza pela alta incidência de chuvas de janeiro a março, ao contrário das zonas de clima temperado, onde estão as mais consagradas regiões vinícolas, como Chile, Argentina, Califórnia, Austrália e Europa, em que não chove no verão. É justamente no verão, quando as uvas entram no período de maturação, que elas precisam de sol e tempo seco. Chuvas nessa fase, aliadas à umidade que elas carregam, dificultam um amadurecimento ideal dos cachos — a qualidade do vinho está diretamente ligada à qualidade da matéria-prima.
Na mesma época em que me posicionei descrente, o especialista em viticultura com mestrado na Universidade de Bordeaux Murillo de Albuquerque Regina desenvolvia estudos para alterar o ciclo de produção da videira e viabilizar a produção de vinhos de qualidade em zonas da região Sudeste. Sua tese consistia em mudar a data da vindima e colher as uvas no inverno, explorando as condições climáticas da estação naquela zona: de abril a junho, meses que antecederiam a colheita, o tempo é seco, os dias são ensolarados e as noites, frescas, situação favorável a uma boa maturação. A videira, no entanto, insiste teimosamente em florescer dentro do seu ritmo, o que, sem intervenções, implicaria a vindima acontecer no verão. Com frutos duas vezes por ano é inviável alcançar um patamar superior de qualidade.
A partir de ensaios conduzidos numa parceria entre a Epamig, Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais, e uma propriedade privada no sul do estado, a Estrada Real, o pesquisador encontrou o caminho: a dupla poda. Após a colheita normal das uvas no inverno é feita uma poda clássica, deixando na parreira apenas os dois cordões principais. O ciclo, que resultaria numa vindima de verão, é interrompido em janeiro com uma poda drástica, o que dá início a um novo período produtivo, desta vez completo, com a fase de maturação coincidindo com os meses propícios para um adequado desenvolvimento dos cachos.
O primeiro vinho de dupla poda ou “vinho de inverno” (hoje denominação oficial) foi lançado comercialmente em 2010. Na falta de instalações para vinificação, o Primeira Estrada foi produzido na Fazenda Guaspari, situada no município paulista de Espírito Santo do Pinhal, na divisa com o sul de Minas, uma propriedade belíssima, cuja incursão no setor vitivinícola começara despretensiosamente na década anterior com algumas parreiras plantadas no jardim ao lado da sede como parte do paisagismo, ganhando depois dimensão a ponto de se tornar vinícola modelo na utilização da técnica de dupla poda.
Os prêmios internacionais conseguidos pela Guaspari, inclusive o primeiro “ouro” de um vinho brasileiro da região no Decanter Awards de 2016, o Vista do Chá Syrah 2012 (o mesmo rótulo alcançaria outra medalha de ouro em 2017 com a safra 2014), serviram de estopim para o surgimento de vários outros projetos. A criação, em 2016, da Associação Nacional de Produtores de Vinhos de Inverno (Anprovin), que reúne perto de 45 vinícolas do Sudeste (Minas Gerais, São Paulo e Rio), Centro-Oeste (Brasília, Mato Grosso e Goiás) e Chapada Diamantina (Bahia), além de outros 150 produtores que, estima-se, estejam adotando a técnica, consolidou essa região como novo e importante polo vitivinícola.
Para assessorar na implantação, inclusive fornecendo mudas para o plantio, bem como acompanhar e dar suporte técnico aos projetos, Murillo Regina abriu a Vitacea em Caldas, sul de Minas. Além de desenvolver o viveiro de plantas certificadas e de contar com uma equipe de especialistas que se deslocam e seguem de perto o dia a dia de seus clientes, a Vitacea montou um centro de vinificação que presta serviços para vinícolas que ainda não têm adega própria.
Além de equacionar a produção com qualidade e consistência, é imprescindível um bom plano comercial. Produzir vinho é apenas uma parte, vendê-lo é outro desafio. Isso passa por ser conhecido e atrair consumidores. Não é por acaso que, na esteira do crescente interesse por vinho mundo afora, o enoturismo esteja também em ascensão. Conscientes de que o turismo é um grande aliado para promover seus rótulos — com tantas marcas no mercado é difícil lembrar do vinho que se bebeu, mas a visita à vinícola não se esquece —, a maioria das regiões vitivinícolas tem se preparado para atrair o público interessado. Isso não significa apenas fazer com que as vinícolas possam receber os turistas. O pacote tem que incluir infraestrutura adequada, com boas acomodações, restaurantes e atividades paralelas associadas à bebida.
Se tais iniciativas funcionam, mais ainda se elas forem tomadas em grupo, como demonstram as “rotas do vinho” implantadas com sucesso mundo afora. Vale o ensinamento de Robert Mondavi. Ele teve participação decisiva na promoção da região do Napa Valley, cujos vinhos haviam ganhado destaque internacional em 1976, quando ofuscaram tintos de grandes châteaux de Bordeaux e brancos da Borgonha, no evento que ficou conhecido como o Julgamento de Paris. Apesar de não ter nenhum vinho na disputa, Mondavi tinha experiência e visão de mercado, sendo o primeiro a investir em bons vinhedos e a focar em qualidade, procurando combinar a arte e a tradição do Velho Mundo com a mais recente tecnologia, gestão e marketing dos americanos. E, generosamente, sempre se dispôs a dividir seus avanços com os vizinhos. Mondavi acreditava que o sucesso não poderia ser alcançado por um produtor individualmente.
Consciente dessa tese, o empresário Luiz Biagi, com relevante atuação na indústria sucroenergética e um dos idealizadores do programa Proálcool, na década de 70, decidido a levar adiante sua paixão pelo projeto vitivinícola criado em 2020 e reconhecido pel\ sua capacidade de aglutinador, reuniu outras 9 vinícolas paulistas para fundarem a Wines of São Paulo (WSP), apresentada oficialmente na semana passada em Ribeirão Preto. Num primeiro momento, o objetivo é, além de incrementar o enoturismo no interior, divulgando suas “rotas do vinho”, fazer com que os rótulos da WSP entrem nos supermercados mais requintados que dominam centros importantes do estado, assim como ter espaço nas cartas de vinho de restaurantes e hotéis de luxo da cidade, onde está o maior consumo de vinhos finos do Brasil.
De diferentes dimensões e etapas de desenvolvimento, todas com plano de expansão, as 10 vinícolas preenchem o requisito de focar em qualidade e, na medida do possível em função do estágio em que se encontram, ter obtido prêmios em concursos internacionais relevantes, caso do promovido pela revista inglesa “Decanter” (DWWA). Das 10 vinícolas, 5 são assessoradas pela enóloga Isabela Pelegrino, da Vitacea e parceira de Murillo Regina desde o início das pesquisas na Epamig. Em reconhecimento por seu trabalho, ela recebeu uma placa de homenagem no evento de lançamento da WSP, entregue por Luiz Biagi.
A seguir, um pequeno histórico de cada uma das dez vinícolas integrantes da Wines of São Paulo.
Refúgio
Localização: Bofete
Proprietários: Família Antonio José Zilli
Área atual de vinhedos: 14 hectares
Previsão de expansão: até 30 hectares
Castas cultivadas e respectivos rótulos: merlot – Nebbia; pinot noir – L’Île; cabernet sauvignon – Nautilus; syrah – Cinq; chardonnay – Léguas; sauvignon blanc – Terraluna; gewurztraminer – em desenvolvimento.
Produção e engarrafamento na propriedade
Arcano
Localização: Franca. A 1.150 metros de altitude na Alta Mogiana.
Proprietários: Fernando Bizanha e Maurício Orlov .
Início do projeto em 2014
Área total 40 hectares – plantada 5.2 hectares; preparada para expansão 5 hectares
Castas plantadas em produção : syrah, cabernet sauvignon e cabernet franc.
Castas em testes: alvarinho, verdelho, touriga nacional, tannat e tempranillo.
Vinhos disponíveis no mercado: Arcano Rose 2023; Arcano Syrah tinto 2020; Arcano tinto Syrah 2021; Arcano Syrah elementos 2022; Arcano cabernet Sauvignon/ Cabernet franc; Arcano Syrah 2021 – guarda submerso a 32 metros de profundidade em uma represa no complexo de Furnas; Arcano Syrah tinto 2022 Terra – guarda por 6 meses a 7 metros profundidade em matas da propriedade.
Produção apenas com uvas próprias.
Vinificação e engarrafamento na propriedade.
Ferreira
Localização: Campos do Jordão
Proprietário: Eng. Dormovil Ferreira
Início: abril de 2010
Área plantada atual 20 hectares, plantadas entre 2010 e 2024; projeto de expansão em andamento de mais 60 hectares.
A Ferreira não utiliza o método de dupla poda — é colheita de verão; para controlar os efeitos da pluviometria, as videiras são todas cobertas com tela de plástico.
Produz e comercializa 18 rótulos, de castas como sauvignon blanc, syrah, petit verdot, cabernet franc, merlot, cabernet sauvignon, touriga nacional, tannat, malbec, gewurztraminer, pinot noir (para espumante), alicante bouschet, chardonnay, marselan e viognier.
Produção e engarrafamento na propriedade. Produção atual 40 mil garrafas; plano de alcançar 100 mil garrafas.
Assessoria de Isabela Pelegrino
Medalhas alcançadas no DWWA: em 2023: Ouro com o Piquant Soléil Syrah 2022 e três pratas com o São Bernardo Grande Corte 2020, Étoile Montante Petit Verdot 2021, S F Trompete 2021. Em 2020, prata com Fumé Blanche Sauvignon Blanc 2019. Em 2021, duas pratas com São Bernardo 2019 e com o Arcanum da Serra Cab Sauv, Merlot e Petit Verdot 2020
Terras Altas
Localização: Ribeirão Preto
Proprietários: José Renato Magdalena, Fernando Horta e Ricardo Baldo
Início em 2016
Área de vinhedos: 10 hectares, mais 5ha em expansão
Castas plantadas: syrah, cabernet sauvignon e cabernet franc. Em plantio, chenin blanc e grenache
Gamas comercializadas: Cava do Bosque, Entre Rios Terroir, Entre Rios Equlibrio, e Entre Rios Evolução
Produção atual 40 mil garrafas
Produção e engarrafamento na propriedade com enólogo exclusivo
Medalhas alcançadas no DWWA: uma prata em 2023 com o Entre Rios Terroir Syrah 2021
Marchese di Ivrea
Localização: Ituverava
Proprietário: Luíz Roberto di San Martino-Loreanzato di Ivrea
Início em 2017
Área de vinhas: 12 hectares. Previsão de dobrar a área cultivada em 10 anos
Castas plantadas: sangiovese grosso, moscato giallo, nebbiolo e barbera
Produção anual 70 mil garrafas divididos em 12 rótulos entre tintos, brancos, rosé e espumantes
Produção e engarrafamento na propriedade
Biagi
Localização: Cravinhos, cerca de 20 km de Ribeirão Preto
Proprietário: Luiz Lacerda Biagi
Início em 2020
Área plantada: 12 hectares nas castas sangiovese, moscato giallo e nebbiolo; expansão prevista para este ano de mais 9 hectares com castas francesas
Vinhos comercializados: Sangiovese Pietro Biagi ; Moscato Giallo: Eugênia Biagi. Em breve outro branco, o Moscato Giallo Carina Biagi, o Rosê de Sangiovese Carla Biagi e um tinto de Sangiovese, com 14 meses de barrica, o Giordano Biagi.
Vinificação na Vitacea, em Caldas. Em construção a adega própria
Villa Santa Maria
Localização: São Bento do Sapucaí
Proprietários: Família Carbonari
Início: outubro de 2004
Área plantada 28 hectares, com previsão de chegar a 38ha até o fim de 2026
Castas plantadas: cabernet sauvignon, cabernet franc, merlot, syrah, sauvignon blanc, chardonnay, viognier.
Comercialização: sete rótulos com denominação Brandina, entre eles o Assemblage 2020, que entrou na minha lista dos melhores do ano de 2023 e foi medalha de prata no DWWA do ano passado, além de outra prata no mesmo concurso com o Sauvignon Blanc 2020
Vinificação na Vitacea, em Caldas
Assessoria de Isabela Pelegrino
Davo
Localização: Ribeirão Branco (sul do estado)
Proprietário: José Afonso Davo
Início em 2016
Área de vinhedos 62 hectares
Castas plantadas: chardonnay e pinot noir para espumantes, syrah, sauvignon blanc. Na fase de expansão há plantio de touriga nacional, marselan, cabernet franc, petit manseng e alvarinho
Casa Verrone
Localização: Itobi
Proprietário: Família Verrone
Início: 2008
Área de vinhedos 15 hectares, altitude 850 metros
Castas plantadas: syrah, cabernet sauvignon, cabernet franc, pinot noir, marselan, grenache, primitivo, sauvignon blanc, viognier, chenin blanc.
Linhas comercializadas: Colheita, Speciale, Gran Speciale (com a safra 2018, entrou na minha lista dos melhores do ano de 2023) e sobremesa
Guaspari
Localização: Espírito Santo do Pinhal
Proprietários: família Brito
Início: 2006
Área de vinhedos: 50 hectares
Castas plantadas: sauvignon blanc, chardonnay, viognier, syrah, cabernet franc, cabernet sauvignon e pinot noir
Rótulos comercializados: 15, nas linhas Vale da Pedra, Vista do Bosque, Vista do Lago, Vista da Serra, Vista do Chá, os ícones na linha Terroir , e as gamas família e Secreto
Produção e engarrafamento na propriedade
Medalhas alcançadas no DWWA: 2 vezes ouro com o Syrah Vista do Chá (2012 e 2014) e várias medalhas de prata com Vista do Bosque Viognier, Vale da Pedra tinto 2015 e 2017, Syrah Vista da Serra 2015.