Ter o negócio próprio era o sonho da ex-produtora de eventos Andréia Santos quando abriu um bar, franquia da rede Sr. Espetto, em São Paulo. O projeto, conforme reportagem de Juliana Elias, da revista Veja, acabaria se tornando um pesadelo. Era março de 2020 e a inauguração coincidiu com a explosão da pandemia no Brasil, o que a fez enfrentar uma situação vivida por milhões de empresários: meses de portas fechadas, seguidos por horários restritos de funcionamento e, depois, movimento fraco. No final de 2022, com dívidas acumuladas, ela decidiu vender o ponto, e hoje, sem o bar, tenta achar um jeito de pagar o que ainda falta. O CNPJ do bar de Andréia é um dos 6,6 milhões que chegaram ao fim de 2023 inadimplentes. Para entrar na lista do calote, a empresa precisa ter ao menos um pagamento em atraso, seja com banco, fornecedores, relativo a impostos ou até mesmo contas de água e luz. É o maior nível desse problema desde 2016, quando a Serasa Experian, que levanta os dados, começou a fazer a contagem.
Sob qualquer ângulo que se olhe, trata-se de situação alarmante. O número representa um terço dos 20,8 milhões de empresas existentes no país e abrange desde micronegócios, tradicionais vítimas dos momentos de juros altos, até companhias grandes que abalaram o mercado com uma sucessão de crises bilionárias, como Americanas, Light, Oi, Grupo Petrópolis, 123milhas e Gol. Não à toa, as recuperações judiciais cresceram 69% em 2023, de acordo com a Serasa. “É um subproduto de todos os choques que as empresas tiveram desde a pandemia”, diz Carlos Antonio Rocca, coordenador do Centro de Estudos de Mercado de Capitais da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas.
Das pequenas às grandalhonas, a jornada foi parecida: a paralisia das vendas no começo da pandemia gerou a necessidade urgente de dinheiro extra, e encontrou, ainda em 2020, uma avalanche de crédito conforme o Banco Central cortava a Selic, o piso dos juros do país, para inéditos 2%. Em 2021 e 2022, porém, a taxa básica subiu de 2% para 13,75%, e aquela montanha de dívida multiplicou o seu custo. “Há as que quebraram e as que são grandes e têm capacidade de se segurar”, diz o economista Tony Volpon, que foi diretor de Gestão de Riscos Corporativos do BC. “No meio, estão todas as que não têm fluxo de caixa forte o suficiente, nem acesso a outros canais de crédito, e vão ter de digerir isso em um processo vagaroso.”
Diversos fatores associados resultaram no recorde de calotes. Um deles, e nada desprezível, é o fato de os bancos terem se tornado mais exigentes, enxugando os recursos disponíveis ou cobrando caro para novas liberações. O fenômeno é comprovado por números: o crédito concedido por instituições financeiras a pessoas jurídicas caiu de 21,5% do PIB em dezembro de 2022 para 20,8% no final de 2023, de acordo com o Banco Central. Menos crédito, registre-se, significa crescimento menor. “O PIB de 2023 foi puxado pelo agronegócio, que teve um ano excepcional, mas a indústria não cresceu e o varejo avançou muito pouco”, diz Luiz Rabi, economista da Serasa Experian.
A inadimplência alta também trava a queda dos juros. Como os prejuízos dos bancos sobem, eles acabam não baixando — ou baixando menos — as taxas cobradas nos empréstimos, mesmo com a Selic em queda. De dezembro de 2022 a dezembro de 2023, os juros pagos pelos bancos caíram de 13% para 10,6% ao ano. Já a taxa que cobram dos clientes recuou em ritmo menor, de 41,8% para 40,8%. Como reflexo, o spread, que é a diferença de uma taxa de juro para a outra, subiu de 28,8 para 30,2 pontos percentuais, um dos maiores níveis desde 2019, de acordo com o Banco Central.
Outro efeito particular dessa crise é que o custo das dívidas privadas acabou virando, em parte, uma conta dos governos. Isso aparece nos também altos níveis de endividamento público desde a pandemia, um problema que se tornou uma pedra no sapato do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. “Houve muita ajuda e os bancos conseguiram renegociar muitas dívidas logo de saída”, afirma Rubens Sardenberg, diretor de regulação prudencial e riscos da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). “Não fosse por isso, teria sido fogo no canavial.” O Pronampe, para pequenas empresas, e o Desenrola, para as pessoas físicas, foram alguns dos programas de crédito oferecidos pelo governo federal desde 2020. Para os próximos meses, um dos principais projetos do ministro do Empreendedorismo, Márcio França, é lançar uma versão do Desenrola para as pequenas empresas, com o objetivo de facilitar as renegociações entre elas e seus credores. “A ideia é usar os recursos que sobraram do Desenrola para pessoa física, sem mexer no orçamento”, disse o ministério em nota. Entre os microempreendedores individuais, a inadimplência chega a 44%, de acordo com a pasta.
Por ora, o diagnóstico dos especialistas é que os números da inadimplência corporativa ao menos não deverão subir mais. Eles também afirmam que, ainda no primeiro semestre deste ano, os devedores sentirão os efeitos positivos da queda dos juros, e provavelmente os níveis de calote diminuirão. A plena normalização, porém, deverá ser lenta.
Os atrasos de obrigações representam um obstáculo para a expansão da economia. “Enquanto a inadimplência for alta, as empresas não vão investir”, diz Rabi, da Serasa. “É como fazem muitos consumidores: quando estão endividados e voltam a ter renda, o dinheiro não vai logo para o consumo, mas para o pagamento de contas atrasadas”. Como se sabe, os investimentos, seja em máquinas, tecnologia ou infraestrutura, são um dos principais motores do PIB. Não por acaso, estão em queda. No terceiro trimestre de 2023, dado mais recente, enquanto o PIB cresceu 2%, os investimentos encolheram 6,8% versus os de um ano antes. A perspectiva é que, depois do pico da inadimplência, 2024 deverá ser o ano do ajuste. Daí, deixando o sufoco para trás, em 2025 as empresas voltariam a investir. E o país poderia contar novamente com sua principal força: a dos empreendedores.
Publicado na revista Veja de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880