Para especialistas ouvidos pela DW, alto custo, território extenso e pouca visão de longo prazo impedem país de investir em cabos subterrâneos. Crise climática, porém, deve tornar infraestrutura cada vez mais necessária.Quem caminha pelas ruas das cidades brasileiras, depara-se com um emaranhado de fios em postes de eletricidade. Mais do que gerar uma paisagem urbana poluída, a fiação aérea causa acidentes, atrapalha a arborização e é responsável pela instabilidade nos serviços de energia, que ficam sujeitos às condições climáticas.
O recente temporal de 3 de novembro em São Paulo, que matou ao menos oito pessoas, derrubou postes e árvores e deixou moradores sem eletricidade por até cinco dias, evidenciou mais uma vez o tamanho do problema. E cientistas alertam: eventos climáticos extremos como esse vão se tornar cada vez mais frequentes, o que traz à tona o debate sobre a forma como as cidades vão resistir a eles.
No Brasil, a fiação subterrânea corresponde a menos de 1% da malha elétrica. Os exemplos são bastante pontuais, presentes na maioria da vezes apenas em algumas avenidas importantes e centros históricos. Estima-se que no Rio de Janeiro o percentual seja de 11%, em Belo Horizonte, de 2%, em Porto Alegre, de 9%, e em São Paulo, de apenas 0,3%.
Para especialistas ouvidos pela DW, os principais motivos para que o Brasil não invista em fiação elétrica subterrânea são o alto custo dessa infraestrutura e a grande dimensão do país.
“A lógica das distribuidoras é que não compensa investir, já que apenas eventualmente tem um tufão, um temporal. Mas os prejuízos dos sinistros climáticos vão ser mais intensos e frequentes, isso vai trazer um custo tão alto, que logo o investimento em fiação subterrânea será mais urgente”, destaca Nivalde Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
De acordo com ele, a Enel, que opera boa parte da rede da capital paulista, faz investimentos na sua infraestrutura tendo como parâmetro ventos máximos de 80kmh.
“Nesse último temporal, o vento chegou a 115kmh, e a previsão era de apenas 55kmh”, explica o professor, que acredita que essas “surpresas” podem ficar cada vez mais comuns. “Será que esse novo paradigma climático não exige uma revisão dos parâmetros técnicos das cidades?”, questiona.
Quais são as barreiras?
Especialistas apontam que o custo para instalar redes subterrâneas é cerca de 10 vezes maior do que o custo de instalação das aéreas. Existem despesas com obras que envolvem abertura de valas, construção de poços de inspeção e recomposição de calçadas. Além disso, os materiais utilizados na rede subterrânea têm custo maior, já que o cabeamento deve ser revestido e impermeável.
Para Nivalde Castro, o que impede o Brasil de adotar o modelo é o fato de ser um país em desenvolvimento, com um território de grandes dimensões e uma alta densidade demográfica.
“É um investimento muito alto. Até em países ricos, como EUA e Japão, boa parte da rede é aérea. Nossas cidades crescem rápido, não são como as europeias”, aponta.
A principal dificuldade é que, da forma como essas empresas operam, o alto custo poderia ser passado ao consumidor.
“Quando faço um investimento, ele entra na tarifa do consumidor quase imediatamente. A Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] estabelece inclusive um limite permitido de investimento, o chamado investimento prudente. A tarifa subiria muito e a amortização seria longa, geraria problema de inadimplência, furto, protestos”, observa o professor. “Acredito que a melhor solução seria cobrar tarifas diferenciadas, em função da qualidade do atendimento. Onde houver investimento em [rede] subterrânea, a tarifa tem de ser maior, para não criar subsídio cruzado”, acrescenta.
Já para Roberto D’Araujo, engenheiro elétrico e diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (ILUMINA), apesar do investimento inicial ser alto, as despesas futuras diminuiriam.
“Na fiação subterrânea, a manutenção é muito mais barata. O problema é a visão de curto prazo das empresas privadas”, defende.
Desafio do trabalho conjunto
Especialistas destacam que, para uma migração à fiação subterrânea, seria necessário a interlocução entre vários setores, e não apenas o energético. No Brasil, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) é o órgão que coordena as concessões às distribuidoras, define normas para o setor e fiscaliza as empresas durante os contratos. Já a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) regula as empresas de telecomunicação.
“É preciso convencer empresas de telecomunicações para que elas participem também, é um projeto de cidade, não se trata de projeto exclusivamente da distribuidora. Estamos numa situação muito complicada”, destaca Roberto D’Araujo.
Além disso, os projetos na área teriam de começar aos poucos, tendo em vista regiões de maior densidade. O fato de o país não ter investido nessa infraestrutura no passado, deixa a situação ainda mais desafiadora. Nas atuais cidades brasileiras, o custo de uma migração total seria exorbitante, justificam as concessionárias de energia.
“Esse é um argumento que as empresas usam, calculam toda a rede e apresentam um custo de vários bilhões, mas é viável se feito aos poucos”, defende o coordenador do ILUMINA.
A Prefeitura de São Paulo disse essa semana que estima que, somente para o enterramento dos fios na região central da cidade, seriam necessário R$ 20 bilhões.
Em 2017, o ex-prefeito de São Paulo João Doria (PSDB) fez um acordo com a AES Eletropaulo e as empresas de telefonia e internet da capital paulista para implementar um programa de enterramento de fios. A iniciativa se manteve sob o governo de Ricardo Nunes (MDB), mas apenas 37 dos quase 65 quilômetros que haviam sido estipulados como meta foram concluídos.
Também em São Paulo, em 2005, uma lei municipal estabeleceu que as concessionárias de energia e outros serviços via cabo enterrassem por conta própria 250 quilômetros de rede por ano. A Justiça, porém, entendeu que o município não tem competência para legislar sobre o assunto, já que a concessão do serviço de distribuição de energia é federal.
Em Porto Alegre, uma lei sancionada pelo prefeito Sebastião Melo neste ano estabelece o cabeamento subterrâneo até 2038. Especialistas veem a meta com ceticismo, já que projetos concretos de transição para fiação subterrânea são praticamente ausentes em todo país.
Melhorias no sistema já existente
Mas se os custos de uma rede subterrânea são altíssimos, o que pode ser feito para melhorar a situação do país e evitar um novo apagão devido a um temporal?
Para Roberto D’Araujo é preciso organizar as instalações aéreas existentes, separar a mistura de cabos de eletricidade com cabos de telecomunicação e combater irregularidades. “Muitas cidades nos EUA não tem fiação enterrada. Mas você olha pra cima, existe uma arrumação, existe uma distância muito grande da tensão de distribuição e dos cabos de telecomunicação. Poderiam ser colocados postes mais altos para separar diferentes fiações”, argumenta.
Além disso, é necessário melhorar a condição dos postes e dos próprios fios, que muitas vezes estão “descampados”, causando piques de luz e sendo um risco à vida das pessoas que se aproximam. “As empresas de telecomunicações pagam um aluguel às distribuidoras. essa receita deveria ser investida na melhoria da rede, não é uma taxa que cobram do consumidor”, aponta Araujo.
A podagem das árvores é outra questão. O especialista explica que, se feita de maneira correta, ela diminui os riscos de queda em caso de temporais.
“A podagem só pode ser feita com presença da distribuidora, pelo risco da fiação. Então a distribuidora também tem responsabilidade sobre isso”.
O especialista defende ainda que o principal problema é a falta de fiscalização e de aplicação correta de multas, que poderiam servir de recursos para realizar investimentos de melhoria.
“A agência reguladora não fiscaliza de forma eficiente. Só uma melhoria na arrumação dos postes e nas árvores já faria uma grande diferença”, conclui.