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sexta-feira 3 de novembro de 2023 às 19:05h

Estratégia dos argentinos contra a inflação alta é consumir e gastar os pesos

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Uma máxima que, há anos, praticamente todo brasileiro (e cidadãos de outros países do mundo) ouve e repete é que a Argentina está quebrada e que, por isso, a vida do argentino médio não é nada fácil há décadas.

Sim, é verdade. Desde 2001, no ápice da crise econômica da Argentina — que vinha sendo estruturada ao longo da década de 1990 e provocada, em grande parte, por um alto déficit fiscal, ou seja, o país gastava mais do que arrecadava (e é assim até hoje) —, a Argentina entrou em um ciclo de crises econômicas do qual não consegue sair, ano após ano, governo após governo.  As informações são de Márcia Almeida e Eduardo Belo, do jornal Valor.

De acordo com o Indec, o instituto de estatísticas argentino similar ao IBGE, a atividade econômica no segundo trimestre deste ano encolheu 4,9%, na comparação com o mesmo período de 2022.

E contra fatos, não há argumentos. Mas o argentino médio argumenta e prova que, mesmo com uma inflação de 103,2%, acumulada nos nove primeiros meses deste ano — 138% em 12 meses —, uma taxa de desemprego de 6,2% em setembro e com uma desvalorização brutal do peso argentino em relação ao dólar — de janeiro a setembro o chamado dólar blue (paralelo) subiu cerca de 190% (e contando) —, é possível encher os magazines atrás de bens duráveis, como fogões, TVs e geladeiras, ou formar grandes filas na porta de restaurantes nada populares como El Preferido de Palermo, Gran Dabbang e Chuí, entre outros.

Analistas e cientistas econômicos do país propagam a teoria de que como não há um modo seguro de poupar dinheiro, porque a inflação “devora” o valor do já combalido peso, os argentinos saem comprando bens duráveis como uma forma de, ao acumular patrimônio, protegerem o valor do salário que tanto suor lhes custa ganhar. As saídas em busca do prazer de degustar uma boa comida e beber um bom vinho também são consideradas um investimento.

 — Foto: Arte/Valor
— Foto: Arte/Valor

“A busca por um prazer imediato, através de algum consumo fora de casa [como ir a um restaurante] ou do turismo de fim de semana, é uma via de fuga à inflação, à desvalorização e à incerteza quanto ao futuro imediato”, comenta o economista Luis Secco, da consultoria Perspectiv@s Económicas.

“Essa gratificação pode até ser vista como uma forma de investimento. Neste caso, um investimento em memórias, algo que os smartphones colocam ao nosso alcance com uma fotografia ou uma selfie partilhada nas nossas redes sociais.”

“Comer fora é uma tradição portenha como o tango, o Charly Garcia, o Fito Paez. Trato de viver sempre da melhor maneira, não só comprando, mas também vivendo”, corrobora o argentino de Córdoba Felix Fassone, artista plástico que vive entre o ABC paulista e Buenos Aires.

A constante corrosão do peso pela inflação acelerada é um dos motores do consumo elevado. “Você não tem muita possibilidade de economizar em pesos devido à inflação. Portanto, o duplo fenômeno que vem ocorrendo nos últimos tempos é que grande parte dos pesos excedentes, se houver, é gasta”, explica Martín Epstein, analista do Centro de Economia Política Argentina (Cepa).

Quando é possível, os pesos são investidos na compra de dólar, mas a escassez da divisa americana muitas vezes torna mais adequado simplesmente gastar em moeda local do que esperar encontrar dólares disponíveis enquanto o peso perde valor todos os dias. “É um problema que entendo que no futuro, a médio prazo, teriam que ser encontrados mecanismos para que possa ser reinvestido em pesos, mas ao mesmo tempo tem a vantagem de sustentar o nível de consumo.”

Segundo Lucía Echerría, doutora em economia pela Universidad Nacional de La Plata e especializada em economia doméstica, em geral, a população sabe que os incentivos para guardar dinheiro “estão distorcidos pelo contexto inflacionário e pela incerteza econômica pela qual passa o país”. Ela diz que uma opção para manter o valor do dinheiro são as aplicações em renda fixa, que protegem, parcialmente, o poder aquisitivo do peso. Outra opção é a compra de dólares, mas que é uma solução embarreirada por muitas restrições, se a compra da moeda americana for feita pela via legal, e que mesmo sua aquisição pelo “mercado negro”, que é mais acessível do que pelos meios legais, há riscos.

Acumular patrimônio

“Assim, muitos argentinos veem na compra de bens duráveis a possibilidade de proteger seu poder compra. Ainda mais porque se pode adquirir esses bens em parcelas sem juros, com o cartão de crédito, ou com uma taxa de juros baixa em comparação com a inflação em curso”, diz Echerría.

Ela observa que, com as incertezas sendo mais potencializadas nos dias que antecederam o primeiro turno das eleições gerais de 22 de outubro, muitas pessoas estocaram não só produtos básicos para o dia a dia, como alimentos e de higiene, mas também bens duráveis, como eletrodomésticos.

Ela destaca que esse consumo, por vezes desenfreado pela gana — termo tipicamente argentino — de se aproveitar um produto com preço melhor hoje, já que no dia seguinte estará mais caro, pode dar até a impressão de que a economia, afinal, não está tão mal.

Federico Wilhelem, técnico de TI que trabalha em um banco em Buenos Aires, afirma que, como o acesso ao crédito para comprar bem duráveis de valor mais alto, como apartamento e carro, praticamente inexiste na Argentina — equivale, no caso do crédito imobiliário, a menos de 1% do PIB, segundo Secco —, acaba gastando seu salário na compra de eletrodomésticos, de modo a preservar minimamente seu salário mensal.

“Neste momento, como já comprei praticamente tudo o que necessitada para a casa, tenho ‘investido’ no prazer de almoçar e jantar fora em restaurantes de cozinha vegetariana, que eu e minha mulher [Juliana Tinoco] apreciamos”, diz. Para ele, já que o sonho da casa própria não é possível, o prazer de comer e beber bem acaba sendo, sim, um investimento “de vida”.

“E quando, às vezes, o salário começa a minguar, no fim do mês, não deixamos de sair para comer fora. O segredo é pedir porções menores dos pratos que gostamos”, afirma Wilhelem, que costuma frequentar os restaurantes Sampa, Chuí e Fifi Almacén.

Echerría ressalta que esse comportamento do argentino em busca da valorização do salário pela compra de bens duráveis e serviços se reflete até mesmo nos dados econômicos do Indec, como o Índice Mensal de Atividade Econômica (Emae). Segundo ela, o dado de julho deste ano, do Emae, apontou queda de 1,3% na atividade econômica face ao mesmo mês de 2022, mas o setor de “hotéis e restaurantes” ficou entre as três atividades com os maiores aumentos interanuais.

“Tarjetear”

Para se equilibrar nessa corda bamba econômica sem perder a vontade de viver (e não só de sobreviver) e sem ter de pedir dinheiro emprestado ou mesmo “assaltar” o colchão de dólares (que na Argentina é literal), o argentino mantém o prazer de sair para comer mesmo durante a semana porque acaba “tarjeteando” a sua economia doméstica, como contou ao Valor a corretora de imóveis Valeria Luzarreta Schoo.

Explica-se: em espanhol, a palavra para designar cartão (no caso, o de crédito ou débito) é “tarjeta”; assim que é graças a essa ação, de “tarjetear”, que Valeria consegue ir a um restaurante com o marido e o filho porque passa o cartão de crédito ao pagar a conta e, quando a fatura chega, semanas depois, o valor do jantar ou do almoço terá sido “comido” pela inflação — nem sempre tanto quanto o salário, uma vez que existem os chamados “gatilhos” que amenizam a perda do poder aquisitivo.

Perda do poder aquisitivo

Ainda que se disponha a consumir — e às vezes seguir o exemplo do próprio governo e gastar mais do que tem —, o argentino médio enfrenta um constante estrangulamento da renda. Um dos principais problemas da inflação é a acentuada queda de poder aquisitivo. Embora os salários tenham recentemente recebido reajustes periódicos para acompanhar a evolução incessante dos preços, a perda de poder de compra se mantém. Martín Epstein, do Cepa, conta que, em 2017, o salário médio do país (hoje em cerca de US$ 840 por mês, segundo o WorldData) cobria com alguma folga o custo da cesta básica argentina. Do fim de 2019 para cá, revela Epstein, a relação é de 80%: o salário médio é inferior ao custo da cesta.

“Isto significa que há uma perda de poder de compra muito acentuada de 2019 para cá”, comenta. Este ano, com a reposição salarial mais acelerada, o salário médio passou a 85% de uma cesta básica, revela o economista, o que é melhor, mas claramente insuficiente para recompor o padrão de vida.

Ele pondera que, apesar da inflação, os níveis de pobreza do país não pioraram significativamente e estão praticamente nos mesmos do governo de Mauricio Macri (2015-2019), em torno de 35%. Segundo essa visão, a correção salarial relativamente ágil evitou que os índices de pobreza se aprofundassem ainda mais.

Mesmo assim, de acordo com o Indec, em dado relativo ao primeiro semestre deste ano, 40,1% dos 46 milhões de argentinos vivem abaixo da linha da pobreza, o que equivale a quase 18,5 milhões de pessoas.

O economista acredita que a não piora do quadro de renda nos últimos meses se deve mais a essa recomposição salarial praticamente permanente do que à dolarização da economia.

“Há negociações constantes para aumentos salariais nos setores formais e há, pelo menos neste último governo, uma política de recuperação através de subsídios que aliviam um pouco o impacto da inflação”, mas ele reitera que não é uma situação ideal, apenas “menos dramática”.

Segundo o economista do Cepa, os salários dos trabalhadores formais estão quase empatados com a variação da inflação de 2019 para cá, com uma perda pequena. Já os informais vivem momento mais difícil. “Obviamente, quando você olha o que acontece com a informalidade, o cenário é muito mais complicado, porque o nível de renda é menor, porque a possibilidade de recuperação de renda é menor”, afirma. Os informais são em torno de 35% da força de trabalho.

O governo argentino tem procurado minimizar o problema com o pagamento de auxílios de 94 mil pesos (cerca de R$ 1.300) em outubro e novembro. Um levantamento da consultoria LCG, apontou que a perda de poder aquisitivo para o trabalhador formal argentino foi de 20% nos últimos cinco anos. Os informais teriam perdido em torno de 40%.

Epstein acredita que o problema da falta de dólares na economia argentina deve ser minimizado no ano que vem, independentemente de quem ganhe a eleição. No dia 19 de novembro, os candidatos Sergio Massa, peronista e atual ministro da Economia, e Javier Milei, ultradireitista, disputam o segundo turno da eleição presidencial. O otimismo não está exatamente nos candidatos, mas nas circunstâncias. Espera-se que em 2024 não se repita a seca que afetou a produção agropecuária da argentina este ano, pela terceira safra seguida, e comprometeu as exportações. A perda de receita com o comércio exterior foi de 40%. A volta à normalidade deve trazer os dólares da exportação de volta e irrigar a economia e tornar a taxa de câmbio mais estável.

Sobre inflação, Epstein prefere não arriscar. “Num cenário de inflação de três dígitos como o que temos, falar como será o próximo ano em termos inflacionários é difícil”, comenta. “Mas o que posso dizer é que o cenário, em dólares no próximo ano, será tremendamente positivo e isso pode favorecer, digamos, uma queda acentuada da inflação.”

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