O mandato do Brasil como presidente rotativo do Conselho de Segurança da ONU termina nesta terça-feira (31) e, nos últimos dias, a diplomacia brasileira tem feito um último esforço para destravar o impasse sobre uma resolução a respeito do conflito entre Israel e o grupo palestino Hamas antes do fim da presidência brasileira.
Após quatro propostas terem sido rejeitadas nas últimas duas semanas, a diplomacia brasileira tenta agora “driblar” os pontos sensíveis apresentados por potências como Estados Unidos, Rússia e China para obter a aprovação da resolução.
Diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado descreveram que a estratégia brasileira passou por uma intensificação dos diálogos com membros não-rotativos do conselho e por tentativas de afinar o texto da resolução para que ela não seja vetada mais uma vez.
Ao mesmo tempo, tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, têm mantido conversas com lideranças internacionais para tentar diminuir as resistências à aprovação de uma resolução que possa diminuir a temperatura do conflito
O conflito mais recente entre Israel e o Hamas eclodiu no dia 7 de outubro, depois que integrantes do grupo palestino iniciaram uma série de ataques a alvos civis e militares israelenses.
Os ataques foram condenados por dezenas de países da comunidade internacional. Eles aconteceram na primeira semana da presidência brasileira junto ao Conselho de Segurança.
Desde então, o governo de Israel deu início a uma resposta militar com bombardeios praticamente diários a alvos na Faixa de Gaza, de onde partiu o ataque liderado pelo Hamas. A intensidade dos ataques também vem sendo alvo de críticas internacionais.
O Conselho de Segurança é formado por 15 países, sendo 10 membros rotativos e cinco permanentes com poder de veto: Rússia, Estados Unidos, França, Inglaterra e China. Eles formam o chamado P5. Os demais, são chamados de P10.
Para qualquer proposta ser aprovada no Conselho de Segurança da ONU, ela precisa de pelo menos nove votos dos 15 países membros do órgão.
Também não pode ter nenhum veto. Apenas os membros permanentes do grupo têm direito a veto.
A primeira proposta de resolução sobre o atual conflito foi feita pela Rússia, mas recebeu os votos contrários de três dos cinco membros permanentes: Estados Unidos, Reino Unido e França.
A segunda proposta, feita pelo Brasil, também não foi aprovada. Daquela vez, os Estados Unidos foram o único país do chamado P5 a vetar o texto.
Daquela vez, a justificativa americana foi a de que o texto proposto pelos brasileiros não mencionava o direito à autodefesa do Estado de Israel.
“Israel tem o direito inerente à autodefesa”, disse a representante dos EUA na ONU, a embaixadora Linda Thomas-Greenfield.
Na semana passada, outras duas propostas foram rejeitadas: uma apresentada pela Rússia e outra pelos Estados Unidos.
A estimativa é de que pelo menos 1,4 mil israelenses morreram vítimas do ataque do Hamas. Segundo o governo do país, há pelo menos outras 200 pessoas mantidas como reféns pelo grupo.
Do outro lado, segundo o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza, pelo menos sete mil palestinos já morreram vítimas dos ataques conduzidos por Israel. O governo na Faixa de Gaza é controlado pelo Hamas.
Em meio a esse impasse, a UNRWA, agência da ONU para refugiados palestinos, disse, na semana passada, que o atual conflito na região já foi responsável pelo deslocamento de pelo menos 1,4 milhão de pessoas na Faixa de Gaza. Desse total, 600 mil estariam em abrigos ou instalações fornecidas pela agência.
Esse deslocamento aconteceu após Israel alertar a população palestina a se dirigir ao sul da região por conta das ações militares que seriam realizadas na parte norte. As entradas e saídas da Faixa de Gaza estão fechadas.
A ONU e organizações internacionais vêm alertando para o risco de desabastecimento de água, alimentos, remédios e outros produtos.
A estratégia brasileira
Para tentar driblar o impasse existente entre Estados Unidos, de um lado, Rússia e China, de outro, o Brasil se juntou a outros três membros não-permanentes do Conselho de Segurança para desenhar uma resolução.
Os três membros mais próximos do Brasil nesse esforço, segundo a diplomacia brasileira, são Suíça, Emirados Árabes Unidos e Malta, que é porta-voz do chamado P-10, grupo dos membros não-permanentes do Conselho de Segurança.
Nos últimos dias, diplomatas brasileiros mantiveram reuniões a portas fechadas com representantes destes países para trabalhar o texto.
Diplomatas brasileiros afirmaram à BBC News Brasil que os negociadores do Conselho se debruçam sobre pontos principais: menções ao direito de autodefesa de Israel; e um eventual cessar-fogo na região.
Os dois pontos são considerados polêmicos porque têm influência direta sobre os rumos do conflito.
Um diplomata brasileiro disse à BBC News Brasil que há a preocupação de que uma menção na resolução ao direito de autodefesa israelense poderia ser usada como justificativa para uma intensificação das ações de Israel na Faixa de Gaza.
Por outro lado, também haveria preocupação entre os norte-americanos e outros aliados de Israel sobre os efeitos que um eventual cessar-fogo poderia ter. O temor é de que o Hamas poderia aproveitar a pausa para se reorganizar e voltar a lançar ataques a Israel.
Os termos exatos para “driblar” esse impasse, segundo diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil, ainda não foram encontrados.
A estratégia é que o texto desenhado por esses quatro países tenha a maioria ou todos os votos do P-10. Isso, avaliam os diplomatas brasileiros, poderia pressionar os membros permanentes a reconsiderar um possível novo veto ao texto.
A expectativa é de que um rascunho fique pronto nesta terça-feira (31/10), último dia da presidência brasileira. Depois disso, o texto poderia ser levado à votação do Conselho.
Diplomatas brasileiros afirmam que a estratégia brasileira se dividiu em três frentes.
O principal objetivo, até o momento, é criar uma espécie de pausa no conflito para que a população palestina que vive na Faixa de Gaza possa receber ajuda humanitária, principalmente, pela fronteira da área com o Egito.
Uma dessas frentes é conduzida pelo presidente Lula, que vem mantendo conversas com líderes de diversos países desde o início da crise.
Entre esses líderes estão o presidente da França, Emmanuel Macron, o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas.
Outra frente é conduzida pelo assessor especial para Assuntos Internacionais, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. Nos últimos dias, ele teria tido encontros e conversas com assessores e lideranças diplomáticas de diversos países para avaliar o cenário.
A terceira frente, considerada mais ampla, é a liderada pelo Itamaraty, que vem, sob orientação do governo, tentando negociar um texto que possa ser aprovado pelo conselho. Essa frente é liderada pelo chanceler Mauro Vieira e pelo representante brasileiro na ONU, o embaixador Sérgio Danese.
Na segunda-feira (30/10), Mauro Vieira teve uma conversa telefônica com o secretário de Estado americano, Anthony Blinken em que conversaram sobre as negociações em curso no Conselho de Segurança da ONU. Uma fonte ouvida pela BBC News Brasil em caráter reservado afirmou que a ligação partiu do ministro brasileiro.
Conflito Árabe-Israelense e o Brasil na presidência do Conselho
A dificuldade em obter um texto que agrade a todos os membros permanentes do Conselho de Segurança foi mencionada por Mauro Vieira nesta segunda-feira, durante reunião do colegiado, e também por especialistas em Relações Internacionais ouvidos pela BBC News Brasil.
“Desde 2016, o Conselho não foi capaz de aprovar uma única resolução sobre a situação na Palestina. A situação no Oriente Médio é, portanto, de longe, uma das situações mais bloqueadas no Conselho de Segurança […] Isso mostra a ineficiência do sistema de governança e da falta de representatividade de certas partes do mundo nesse grupo”, disse Vieira.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes, um dos elementos que torna a chegada a uma resolução sobre o conflito tão difícil é o que ele classificou como nova “bipolarização” da ordem internacional.
Essa polarização se daria entre um grupo de países liderados pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, de um lado, e Rússia, China e nações sob suas influências, de outro.
“Alguns analistas afirmam que há, hoje, uma bipolarização 2.0 (menção à ordem bipolar que vigorou entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria). Nesse contexto, torna-se mais difícil tomar qualquer decisão, especialmente aquelas que tocam os interesses das superpotências porque prevalece o que chamamos de jogo de soma zero: se um lado ganha, o outro perde”, disse o professor à BBC News Brasil.
“Esse conflito em especial opõe interesses vitais e visões de mundo antagônicas dos membros permanentes do Conselho de Segurança de forma que a linguagem da resolução, para que passe, precisa ser eficaz para a realidade do terreno sem ferir suscetibilidades dos membros permanentes”, disse à BBC News Brasil a professora da Escola Superior de Guerra do Ministério da Defesa, Mariana Kalil.
Os dois especialistas avaliam que, considerando as características da presidência rotativa do Conselho de Segurança e a forma como o órgão é estruturado, seria incorreto atribuir responsabilidades ao Brasil pela demora para que uma resolução sobre o conflito seja obtida.
“De forma alguma seria possível estabelecer uma relação entre o papel do Brasil como presidente do Conselho de Segurança e a dificuldade de aprovação de uma resolução sobre o conflito”, disse Mariana Kalil.
Segundo ela, neste período, o Brasil chegou a conseguir um consenso entre membros do chamado P3 (grupo formado por Estados Unidos, Reino Unido e França) e Rússia e China.
Isso aconteceu durante a votação da resolução proposta pelo Brasil que obteve votos favoráveis da França, Rússia e China e a abstenção do Reino Unido. A abstenção do Reino Unido em um contexto em que ele poderia exercer o poder de veto é vista como uma posição de apoio à resolução.
“Unanimidade, diante de um caso como o referido, é, na prática, altamente improvável”, disse a professora.
Para Dawisson Lopes, simples fato de presidir o conselho não seria suficiente para que o Brasil conseguisse um consenso sobre o conflito entre os membros do Conselho de Segurança.
“A presidência do Conselho é uma posição quase procedimental. O país que assume o comando praticamente só organiza os trabalhos do grupo. Ela tem um quê de cerimonial, mas o Brasil não tem capacidade efetiva de, durante um mês, impor uma agenda ou fabricar consensos”, disse o professor.