Nascida na Vila Vintém, na Zona Norte do Rio, Paty Félix — ou Patrícia Félix — tornou-se a conselheira tutelar mais votada da história do Brasil no último domingo, conquistando quase seis mil eleitores. O recorde anterior, de acordo com entrevista de Luísa Marzullo, do O Globo, havia sido alcançado por ela mesma, em 2019, quando obteve pouco mais de 4,6 mil votos.
Advogada e educadora social, Paty é militante filiada ao PSOL desde 2016. Em 2019, chegou a exercer a função de secretária parlamentar do ex-deputado David Miranda, que morreu em maio deste ano. Um ano depois, concorreu à Câmara dos Vereadores do Rio e, atualmente, é primeira suplente do partido.
Sobre as eleições para o conselho deste ano, a conselheira diz não ver problema na ascensão de evangélicos, mas faz um apelo para que a sociedade civil fiscalize: “É inadmissível que um conselheiro utilize outra fonte que não que seja a nossa Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”.
A senhora é militante há anos. O que a levou a trabalhar com crianças e adolescentes?
Eu tenho um trabalho com criança adolescente desde os meus 16 anos. Comecei muito cedo por conta, mesmo, da necessidade de Vila Vintém. Costumo dizer que a luta é que escolhe a gente, né? Quando eu tinha 14 anos, meu irmão foi morto aos 22, nunca houve investigação disso e dali surgiu uma revolta inexplicável, que deu origem ao ativismo.
Esse ativismo tem conexão com o PSOL?
Não, de maneira nenhuma. Me filiei ao PSOL apenas em 2016. Claro que a organização partidária se dá por movimentos sociais e eu me identifiquei com essas vias, mas minha luta é muito maior que isso. Sempre fui ligada a movimentos de esquerda e, nos anos 80, estava em movimentos da Igreja Católica, que era o que tinha à época, a Teologia da Libertação.
Mas, em algum momento, teve o interesse de concorrer a um cargo eletivo?
Eu sempre achei que posso ser o que eu quiser. Em 2020, tentei ser vereadora e hoje sou primeira suplente do PSOL.
Após essa votação histórica, pretende concorrer novamente no ano que vem?
Seria uma possibilidade sim e não teria problema nenhum. Todos podem concorrer, desde que estejam aptos a isso. Não quero que achem que uso o conselho para me promover, estou representando uma luta das crianças e adolescentes, coisa que faço desde os 16 anos. Não é sobre a Patrícia.
Em 2019, a senhora já havia sido eleita com votação histórica. A que atribui esse aumento de mais de mil votos?
A eleição do conselho tutelar não é tão divulgada, sempre ocorrem muitos problemas, e muita gente não sabe nem de sua existência. Em 2019, peguei meu material e fui para a rua, conversei com as pessoas em saída de metrô, em bares, com a juventude e, assim, consegui uma mobilização. Então atribuo isso à minha comunicação e experiência. Quando as pessoas se sentem envolvidas, sentem confiança. Nesse segundo mandato, elas já conheciam meu trabalho, de resistência.
Como é resistir dentro do conselho?
O Conselho sofre um verdadeiro desmonte, faltam recursos, falta tudo. Os conselheiros são submetidos a uma carga horária extensiva, uma média de 55 horas semanais. Quando falamos dessa disputa acirrada também é fruto desse desmonte: as pessoas não sabem a importância dos órgãos e os critérios de seleção. Os requisitos de aferição do conhecimento teórico e prático deixam de fora integrantes de organizações sociais não credenciadas, mas consideram as igrejas, que nem sempre têm trabalho específico.
E, neste ano, os evangélicos conseguiram emplacar vários candidatos. Como isso pode impactar o dia a dia dos conselhos?
É um processo de democracia direta e toda esta dinâmica é justa. Eu não vejo problema nenhum, mas o estado é laico. É inadmissível que um conselheiro utilize outra fonte que não que seja a nossa Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A sociedade civil tem que cobrar e impedir qualquer coisa que esteja fora disso. Dentro do Conselho Tutelar você pode ser evangélico, você pode seguir matizes africanas, você pode nem ter religião e ser agnóstico. O Brasil é um país plural, mas quando eu vou praticar, não posso botar nada acima do que é legal. E isso ocorreu em alguns casos, como o do Espírito Santo (onde uma menina de 11 anos engravidou após ser abusada e precisou viajar ao Recife para interromper a gravidez).
Então não há problema propriamente em um evangélico se candidatar?
Os movimentos sociais são sempre impedidos de se manifestarem. O problema atualmente é que as igrejas ocupam alguns territórios em que o estado não existe mais, e a igreja não pode substituir o estado.
Então o problema é o estado, e não as igrejas?
Se a gente retomar o estado, as organizações sociais se fortalecem. Não acredito que uma pessoa merece ser eleita por ser ou não de uma religião, isso não a qualifica. O Conselho está ali para todos, da criança pobre à rica, porque a negligência afeta todas as camadas. Talvez essa seja a diferença de quem vem dos movimentos sociais. Percebemos que o problema é a falta de políticas públicas e não a falta de Deus. Deus existe para cada um, mas não tem nada a ver com isso.
Como os movimentos sociais são impedidos?
A gente teve uma campanha de um mês, e foi um mês de inferno, porque se você postar algo na rede social, você é chamado. Se as pessoas se organizarem em torno de você, você é chamado. Não pode fazer quase nada. Já a igreja, ou melhor, alguns grupos neopentecostais, têm um movimento contínuo. A mobilização é o ano inteiro.
Mas essa mobilização se intensificou? Digo, com a ação direta da direita conservadora
A sociedade civil está organizada e a gente teve um governo pautado em “Deus, pátria, família” que matou e foi negligente com a vacinação da Covid-19. É claro que as pessoas iriam se mobilizar. Eles não estão só no conselho, tem um movimento mundial da extrema-direita. Então as pessoas têm que cair para cima e não pode reduzir simplesmente a uma questão de igreja. Tem muita coisa por trás. E se os evangélicos se organizam nesta pauta, a gente vai estar na contenção. Vamos cobrar que no Conselho Tutelar os conselheiros todos ajam dentro de sua atribuição.
E qual é a importância de seguir essa atribuição?
A criança e o adolescente são os maiores patrimônios da nação, e o conselheiro deve garantir que isso seja preservado.