No poder há três semanas, o governo de Giorgia Meloni na Itália vinha adotando um comportamento pendular: a tentativa de se mostrar alinhado ao antecessor Mario Draghi no plano externo ao mesmo tempo que, internamente, apostava na ruptura, com medidas um quê estridentes.
Um atrito diplomático com a França nos últimos dias, porém, fez com que a postura prudente e pragmática fora, linha dura e ideológica dentro não durasse muito. “O governo trabalha no terreno da política simbólica. Trata de questões que não são estratégicas nem essenciais, mas servem para marcar o campo do ponto de vista ideológico, definir um perímetro cultural e sinalizar uma mudança política”, diz à Folha o cientista político Alessandro Campi, professor da Universidade de Perugia.
Para ele, ao priorizar medidas associadas ao restabelecimento da ordem, a primeira-ministra enfatiza temas caros ao eleitorado que levou à vitória a aliança de ultradireita formada por seu partido (Irmãos da Itália) e os de Matteo Salvini (Liga) e Silvio Berlusconi (Força, Itália).
Na veste europeísta, Meloni havia feito sua primeira viagem após a posse para Bruxelas, sede da União Europeia. Lá, tirou fotos sorridentes e deu declarações de tom amistoso, distantes do “fim da mamata” para o bloco de que falava na campanha. O primeiro encontro com um líder internacional já havia sido com o francês Emmanuel Macron, em Roma. “Vamos nos entender”, disse ela, na ocasião.
Nos últimos dias, no entanto, com a justificativa de combater a imigração irregular, o governo italiano mirou ONGs que socorrem náufragos e embarcações em risco e abriu um confronto com Paris. Além da questão migratória em si, um curto-circuito na comunicação se transformou em conflito diplomático.
Na semana passada, o ministro do Interior, Matteo Piantedosi, tentou impedir o atracamento na costa italiana de navios estrangeiros de serviço humanitário no Mediterrâneo, onde o fluxo migratório do norte da África, com mais de 126 mil pessoas desde janeiro, já ultrapassou o total do ano passado. Por dias, quatro navios ficaram à espera com cerca de mil náufragos e a legislação internacional prevê que o desembarque nesses casos se dê no país mais próximo.
Inicialmente, o governo tentou realizar a saída seletiva, aceitando pessoas com saúde frágil. Diante da piora das condições a bordo, todos os refugiados de três navios foram autorizados a descer. O quarto, o norueguês Ocean Viking, operado pela ONG SOS Mediterrâneo, se dirigiu à costa francesa.
Foi aí que a situação entre Roma e Paris se agravou. Por um desencontro de informações ainda não esclarecido, na terça-feira (8) Meloni chegou a agradecer a iniciativa da França de “dividir a responsabilidade”. O Eliseu não admitiu o suposto acordo e elevou o tom, afirmando que a responsabilidade legal no caso era italiana. A essa altura, o esforço de prudência de Meloni tinha ido por água abaixo.
“A Itália foi muito desumana, as autoridades não foram profissionais”, afirmou o ministro do Interior francês, Gérald Darmanin. Por fim, “em caráter excepcional” e sob duras críticas da oposição liderada por Marine Le Pen, o país permitiu que o barco atracasse no porto de Toulon, na manhã de sexta (11).
A decisão não encerrou a tensão. Darmanin disse que, como consequência, a França vai suspender a participação no sistema europeu de realocamento de refugiados, convidar outros países a fazer o mesmo isolando a Itália e reforçar, com 500 policiais, a vigilância da fronteira por terra entre os países.
Meloni chamou a reação de Paris de “agressiva, incompreensível e injustificada” e fez uma provocação comparando a quantidade de refugiados na embarcação com o total que já entrou na Itália pelo Mediterrâneo neste ano. “O navio Ocean Viking é o primeiro de uma ONG a atracar na França, com 230 imigrantes. E isso gerou uma reação muito dura contra a Itália, que recebeu quase 90 mil.”
A Itália é o país mais afetado pela crise migratória na região foram 86 mil pessoas desembarcadas neste ano, na conta que inclui outros fluxos em direção à Europa, mas está em quarto no ranking dos pedidos de asilo na UE. São 53 mil, atrás de Alemanha (190 mil), França (120 mil) e Espanha (65 mil).
Apesar do desfecho indesejado, o recado de “bloqueio naval”, um slogan da campanha, foi dado. A primeira-ministra reforçou que foi escolhida por seu programa nas áreas de segurança e combate à imigração irregular. “Os cidadãos nos pediram para defender as fronteiras, e este governo não vai trair a palavra dada.”
Além do endurecimento nessa antiga bandeira da ultradireita, a gestão colocou em prática medidas controversas também na segurança pública e no combate à Covid-19. Em seu primeiro decreto-lei, anunciou um novo artigo do Código Penal, com a intenção de acabar com festas clandestinas, como raves o texto abre brecha para protestos serem criminalizados e seus organizadores, punidos com prisão.
No mesmo ato, profissionais da saúde que não se vacinaram contra o coronavírus foram readmitidos em hospitais e consultórios após o afastamento forçado pelo governo anterior, que centrou o combate à pandemia na obrigatoriedade de imunização para uma série de categorias e atividades. Com a revisão de Meloni, cerca de 4.000 pessoas poderão retomar o trabalho.
As atitudes de um “governo de direita que faz coisas de direita”, segundo Campi, significam uma mudança de rota pelo fato de as últimas formações do Executivo terem sido de caráter técnico ou de “união nacional”, como definia Draghi, sem a escolha dos eleitores. Desta vez, Meloni e seus aliados estão legitimados pelas urnas para pôr em prática um governo de perfil político.
A escolha também ajuda a desviar o foco do eleitorado de temas urgentes, como a alta do custo de vida. Enquanto colocava em debate imigração e raves, Meloni ganhava tempo para lançar um pacote para diminuir o impacto dos preços nas despesas de famílias e empresas, com 9 bilhões, aprovado na quinta.
Ainda em lua de mel com o governo, os eleitores parecem aprovar o tom ideológico. Desde a eleição, no fim de setembro, a aprovação ao partido da primeira-ministra subiu quase três pontos percentuais, de 26% para 28,9%.