A democracia do Brasil pode demorar para se recuperar após um período de ataques ao sistema eleitoral e intensa polarização durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
É o que diz o americano Scott Mainwaring, professor da Universidade de Notre Dame e um dos maiores especialistas do mundo em política, democracias e ditaduras na América Latina.
“Acredito que a democracia brasileira pode demorar algum tempo para se recuperar. Não se passa rapidamente de um cenário de hiperpolarização para um de polarização moderada”, afirmou Mainwaring à BBC News Brasil após a confirmação da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no domingo (30).
“Quando cidadãos tomam partido diante de um cenário intensamente polarizado, suas opiniões e convicções não desaparecem de repente.”
Mainwaring explica que existe, na Ciência Política, um conceito conhecido como ‘polarização afetiva’ – quando há um sentimento de ódio em relação aos adversários e àqueles do outro lado do espectro político.
“A polarização afetiva demora especialmente para desaparecer”, diz.
Para o analista, os Estados Unidos podem servir como amostra. “Joe Biden cometeu alguns erros como presidente, mas na maioria das vezes é um democrata centrista bastante moderado – e a polarização não diminuiu nos EUA.”
Mainwaring foi professor na Universidade de Harvard, da qual é um membro associado. Em 2019, ele foi apontado como um dos 50 cientistas políticos mais citados em trabalhos acadêmicos do mundo.
O americano é ainda autor de dezenas de livros sobre a política da América Latina.
Ataques ao sistema eleitoral e intolerância
“Bolsonaro é claramente uma personalidade autoritária”, diz Mainwaring.
“Quando analisamos a recente onda de populistas de direita, Donald Trump certamente foi o mais importante. Mas Jair Bolsonaro está entre os mais notáveis.”
Para o americano, os constantes ataques do presidente ao Supremo Tribunal Federal (STF) e aos institutos de pesquisa, sua intolerância em relação à comunidade LGBTQ+ e à imprensa crítica e o aumento da violência política são evidências que corroboram essa visão.
O professor também cita os constantes ataques ao sistema eleitoral brasileiro e o incentivo à polarização como fatores que, em sua opinião, levaram ao enfraquecimento da democracia brasileira durante o governo de Jair Bolsonaro.
“Historicamente, ataques a sistemas eleitorais bem estruturados, livres e justos tendem a deixar parte dos eleitores céticos sobre se o sistema realmente funciona”, diz Mainwaring. “Mas nunca houve qualquer evidência credível de que o brasileiro seja vulnerável.”
‘Lula também não é impecável’
Mainwaring ressalta, porém, que Lula tampouco “tem credenciais absolutamente impecáveis” em termos de democracia.
“Em termos de política externa, ele manteve relações amigáveis com Hugo Chávez, que na minha opinião arruinou a Venezuela”, diz o especialista, que também classifica os escândalos de corrupção durante os governos do agora presidente eleito e algumas de suas declarações em relação à guerra na Ucrânia como problemáticas.
Em maio, em entrevista à revista americana Time, Lula afirmou que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, é tão responsável quanto o presidente russo, Vladimir Putin, pelo conflito. “Porque numa guerra não tem apenas um culpado”, declarou.
Para o analista americano, porém, Lula também fez grandes contribuições para a democracia. “Em particular o que ele fez pela expansão da cidadania – muitos brasileiros se tornaram cidadãos de verdade, de uma forma mais profunda.”
Scott Mainwaring afirma ainda que, com um Congresso dominado por opositores e muitos adversários políticos comandando governos estaduais e prefeituras pelo país, Lula será “fiscalizado” de perto em termos de corrupção e políticas governamentais.
O Partido Liberal (PL), de Bolsonaro, terá a maior bancada da Câmara dos Deputados e no Senado no próximo ano.
Nas eleições de 2022, o atual presidente também conseguiu eleger diversos aliados para comandar os Estados.
“O benefício de Lula ser fiscalizado pelo sistema institucional brasileiro é que ele não poderá se engajar em um Estatismo profundo”, afirma.
“Ainda que o Executivo tenha grande liberdade para definir as políticas econômicas, creio que sua atuação possa ficar um pouco mais limitada nessa área também com um Congresso dominado por aliados de Bolsonaro e pelo Centrão.”
“Mas, sem dúvidas, será um grande desafio governar dessa forma”, completa.