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terça-feira 4 de outubro de 2022 às 16:46h

Eleições 2022: bolsonarismo atrai ‘Brasil profundo’ que está cada vez mais distante da esquerda, dizem pesquisadores

ELEIÇÕES 2022, NOTÍCIAS, POLÍTICA


Conforme o BBC News Brasil, o desempenho acima do esperado no primeiro turno da eleição de 2022 do presidente Jair Bolsonaro na campanha de reeleição e de vários candidatos do bolsonarismo para o Congresso demonstrou ressonância do pensamento conservador em camadas bem distintas da sociedade.

Bolsonaro, candidato do PL, obteve 43,2% dos votos válidos ou 51 milhões de votos, um resultado que foi significativamente acima do estimado por pesquisas de opinião durante a corrida eleitoral.

Apesar de denúncias de corrupção, de números ruins na economia e de uma criticada gestão da pandemia, o atual presidente mostrou resiliência política e eleitoral e vai agora para o segundo turno com Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Os pesquisadores Fabio Baldaia e Tiago Medeiros Araújo, do Instituto Federal da Bahia, desenvolvem — ao lado dos também pesquisadores Sinval Silva de Araújo e Rodrigo Ornelas — estudos sobre como os valores do pensamento bolsonarista se enraizaram com bastante apelo em amplos setores do país.

Eles afirmam que o bolsonarismo têm conseguido dialogar com novas camadas populares — de evangélicos a trabalhadores de aplicativos — e com o “Brasil profundo” do interior do país com uma eficiência maior do que a esquerda em sua mensagem.

Veja abaixo os principais trechos da entrevista com os pesquisadores:

 O que os resultados do domingo falam sobre o perfil político do brasileiro?

Sem desconsiderar os mais de 57 milhões de votos que Lula recebeu, é possível falar de uma “essência conservadora” em parte significativa da população brasileira?

Fábio Baldaia – A hipótese que a gente trabalha é de que existem elementos de longa duração na forma de ser brasileira que explicam a ascensão e a resiliência política de Bolsonaro mesmo após a pandemia e uma gestão não exitosa da economia nesse período. Eu não diria que há uma essência conservadora no brasileiro, mas sim elementos daquilo que a gente chama de “Brasil profundo” que podem ser traduzidos como uma ideia de conservadorismo.

São elementos relacionados à manutenção da ordem, à família, a uma certa visão da segurança pública que ainda estão no Brasil com bastante força, por isso a ida de Bolsonaro para o segundo turno e a eleição de muitas figuras apoiadas por ele para o Congresso.

Tiago Medeiros – Há sem dúvida esse apreço pelo lugar da família como garantidora e mantenedora da estabilidade no mundo. E há a ideia, também associada diretamente à família, de que a propriedade é algo conquistado pelo indivíduo e deve ser garantido ao indivíduo. Então toda intervenção estatal pode representar algum tipo de ameaça a isso.

 E como Bolsonaro conseguiu ser a figura que encampa esses elementos?

Baldaia – Nos setores de expansão do agronegócio no Centro-Oeste e no Norte, especialmente em regiões de desmatamento e de garimpo, existe uma ideia de que o desbravamento é regrado pelo Estado, de que o Estado atrapalha e você deve agir com malandragem, desviando das regras para produzir. É um pouco essa a figura de Bolsonaro.

Qual foi o discurso dele na pandemia?

“A gente deve encarar a pandemia de peito aberto. Vai trabalhar e enfrentar o que acontecer”. E é também o discurso de conservadorismo na segurança pública, de que deve dar a autonomia operacional ao policial para poder fazer aquilo que está ao alcance das mãos, matar quando julgar necessário. Exalta a liberdade, a autonomia individual, mas não é o liberalismo à francesa, à inglesa. É de resolver as coisas. É uma ideia de simplismo que a gente está desenvolvendo nos nossos textos. Bolsonaro representa sempre uma resposta simples a problemas que são complexos.

E ele dá coesão ao conservadorismo brasileiro ao dizer que os intelectuais, a elite universitária e a imprensa, na verdade, dificultam as coisas, atrapalham. Bolsonaro representa aquele cara que bate na mesa de maneira agressiva para resolver. Passa por isso o discurso do imbrochável no primeiro turno.

 Em setores vulneráveis economicamente no Brasil, muitas vezes a família acaba sendo um dos poucos elementos de apoio. A direita e o bolsonarismo praticamente monopolizam o discurso sobre o tema. Por que a esquerda tem dificuldade de articular um discurso próprio sobre família?

Medeiros – A minha hipótese é de que a esquerda mundial, não só no Brasil, mas no Ocidente, ainda está presa a conceitos do Maio de 1968 na França. Foi quando o conservadorismo ficou associado a estruturas fixas e dominantes da sociedade ocidental, que deveriam ser combatidas por seu conteúdo e sua simbologia, e a família era um desses núcleos.

Baldaia – Não sei se em algum momento houve o interesse de algum grande movimento de esquerda no mundo ocidental em oferecer um discurso sobre a família. O que apareceu foram políticas muito justas no sentido de garantia de direitos civis, de inserção na sociedade e de representatividade, por exemplo da população LGBT, mas isso não apareceu como algo que alargasse o conceito de família.

Encaixar um discurso sobre a família é reconhecer que ela é um modo de organizar a sociedade mas que pode ser reconfigurada. Não me parece que há uma preocupação central [da esquerda] em apresentar as coisas dessa maneira, de que existem pessoas de maneiras distintas dentro da família, de arranjos diferentes, mas que isso não vai abalar o laço de afeto, o laço de orgulho, o laço de permanência da família.

A direita também trabalha bem o conceito porque trabalha com uma ideia fechada do núcleo familiar.

 O bolsonarismo tem conseguido falar com algumas camadas sociais menos favorecidas de forma mais eficiente que a esquerda?

Baldaia – A gente viu uma grande coalizão pró-Lula, de acadêmicos, artistas, que deu até uma impressão de vitória no primeiro turno. Mas, pelos resultados da eleição de domingo, percebeu-se que isso não se comunicava diretamente com a base das massas. A gente não tem 43% de elite no Brasil.

Há um distanciamento do discurso da esquerda com essa base social que envolve a religiosidade popular, que envolve o “se virar” na vida: o motoboy, a pessoa que roda Uber, o vendedor de hot dog ou a baiana do acarajé, aquele que tem que se virar para pagar as contas.

Me parece que há uma dificuldade de lidar com um novo de mercado de trabalho, com menos carteira assinada, com uma classe trabalhadora das plataformas, mais instável, e o mundo de uma sociedade que não é católica. O Brasil está deixando de ser um país católico.

Acho que esse segundo turno deu um choque de realidade de que há uma grande bolha, de que essa grande coalização não está necessariamente falando com as camadas populares e o interior do Brasil. Me parece prevalecer na esquerda a ideia de culpabilizar. Algo como “olha, eu estou levando a verdade para vocês. Estou apresentando um discurso ilustrado. Vocês não estão aceitando, a culpa é de vocês”.

Quais são as perspectivas para os próximos anos do bolsonarismo depois do segundo turno?

Baldaia – A reversão de 6 milhões de votos, que foi a diferença entre Lula e Bolsonaro, é muito difícil de acontecer. Uma reviravolta é possível, mas eu apostaria numa eleição apertada de Lula e que ele vai ter que trabalhar com muitas concessões no Parlamento para conseguir o mínimo de governabilidade.

Não penso que vai ser nem de longe um governo de esquerda. Vai ser um governo de composição, de retalhos, de recriar ministério para poder fazer a distribuição de cargos. Então vai ser um governo bem complicado, com risco de impeachment o tempo todo já que ele não vai ter maioria no Senado e sim uma oposição numerosa. Há o risco de ter escolhas de ministro do Supremo barradas pelos senadores, o que representaria uma grave crise.

E socialmente o bolsonarismo estará forte e vivo nos Estados e nos municípios. Enquanto construção ideológica, ele é muito poderoso e vai ser uma oposição muito forte, jogando no terreno dele: o bolsonarismo antissistêmico, como oposição, vai “jogar em casa”.

Medeiros – Nós achamos que o bolsonarismo não é um fenômeno estritamente político, diferente do lulismo, e sim um fenômeno sociocultural. Bolsonaro aparece como aquele que empresta o nome para agregar uma série de valores, representações e práticas que estavam dispersos na cultura e que conseguiram a centralidade e unificação na figura dele.

Unificados em uma identidade com um certo orgulho, um certo vigor e agora até com a memória de ter estado no poder. Vão estar nas próximas eleições e no nosso cotidiano. Ou a gente aprende a lidar, a dialogar e a contornar as contradições desse fenômeno ou a gente vai ficar sempre sob esse revés polarizador e constante que só tem ajudado a sepultar o país.

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