Em plebiscito, mais de 60% dos chilenos dizem “não” a Carta Magna que substituiria a atual, da época da ditadura Pinochet. Resultado é duro golpe para o governo do esquerdista Gabriel Boric.Num plebiscito realizado neste domingo (04/09), o Chile rejeitou por ampla maioria a proposta de uma nova Constituição que substituiria a herdada da ditadura de Augusto Pinochet por uma com mais direitos sociais. A vitória contundente do “não” na votação é um duro golpe para o presidente de esquerda Gabriel Boric, no poder há seis meses.
O “não” à nova Constituição venceu com 61,9% dos votos, contra 38,1% do “sim”, após contagem de mais de 99% dos votos. Todas as pesquisas haviam antecipado o triunfo do “não”, mas nenhuma havia previsto uma vitória tão esmagadora.
A votação era obrigatória e contou com a participação histórica de 13 milhões de eleitores, de um total de 15,1 milhões convocados. O voto contrário à nova Constituição venceu em todo o país. Somente entre os chilenos no exterior venceu o “sim”.
Proposta vanguardista previa mais direitos sociais
A realização de um referendo sobre uma nova Carta Magna foi aprovada por quase 80% dos eleitores que votaram em outro plebiscito em outubro de 2020, que lançou o processo constituinte, após grandes protestos nas ruas em prol de melhorias sociais, em 2019.
Em pronunciamento após o anúncio do resultado do plebiscito deste domingo, Boric advertiu que a elaboração de uma nova Carta Magna havia sido a saída para um “mal-estar que segue latente” e que o Chile não pode ignorar, em referência à agitação social de 2019.
O projeto de lei da nova Constituição que foi submetido à votação declarava o Chile um Estado social baseado no Estado de direito e era um dos mais vanguardistas do mundo em termos de igualdade de gênero e de proteção do meio ambiente.
A proposta mantinha uma economia de mercado, mas visava consagrar um novo catálogo de direitos sociais em relação a saúde, aborto, educação e pensões, com ênfase ambiental e “plurinacionalidade” indígena.
Vitória esmagadora
A esmagadora vitória do “não” no plebiscito se explica pelo medo de uma grande maioria de que a proposta constitucional anulasse completamente a oposição política, bem como pelo fato de a nova Carta Magna não prever uma implementação gradual das medidas propostas, afirmou à AFP o analista Marcello Mella, da Universidade de Santiago.
“Foi um tremendo golpe da rejeição contra a aprovação. Ninguém previu esta distância de mais de 20 pontos percentuais”, disse a socióloga Marta Lagos, fundadora do instituto de pesquisa Mori, no Twitter.
“É um desastre, estou super triste. Não posso acreditar nisso. Passamos por tanta coisa nas ruas para acabar assim”, disse María José Pérez, de 33 anos, uma apoiadora frustrada do “sim”, na Praça Itália, em Santiago, onde centenas se reuniram para compartilhar sua tristeza.
“Nunca pensamos, nem mesmo no melhor dos cenários, que iríamos conseguir esta diferença. Portanto, estou muito feliz e esperançoso pelo Chile que está por vir. Espero que as tensões sejam reduzidas”, disse à agência de notícias AFP Pablo Valdes, um advogado de 43 anos que estava celebrando entre os apoiadores do “não”.
Derrota para Boric
A chegada de Boric ao poder, em março deste ano, foi saudada como o advento de uma nova esquerda na América Latina, e, apesar de não ter apoiado abertamente o “sim” à nova Constituição, o presidente tomou posse sob a esperança de mudança.
Neste domingo, ao se inteirar do resultado no Chile, o presidente colombiano, Gustavo Petro, tuitou: “Pinochet ressuscitou”, em referência à ditadura (1973-1990) que forjou em 1980 a Constituição atüe hoje vigente, um texto emendado várias vezes desde então para remover seus aspectos mais autoritários.
“Presidente Boric, esta derrota também é sua derrota”, declarou o ex-candidato presidencial de ultradireita José Antonio Kast, que havia desaparecido das câmeras depois de perder para Boric nas eleições de dezembro passado.
Em entrevista à DW antes do plebiscito, Jorge Saavedra, comunicólogo e professor da Universidade Diego Portales, previu desafios para Boric em caso de vitória do “não”no plebiscito. “Primeiro: seus adversários ganhariam legitimidade para frear o clima de transformação no governo. Segundo: sua base de apoio seria corroída pelas críticas. Terceiro: a própria administração ficaria comprometida. Se a questão constitucional não for resolvida, o plano de governo não poderá ser desenvolvido da mesma forma”, analisou.
Novo processo constituinte
Em pronunciamento à nação neste domingo, após a divulgação do resultado do plebiscito, Boric enfatizou “duas mensagens” que os cidadãos transmitiram: por um lado, que o país “quer e valoriza sua democracia” e, por outro, que “não ficou satisfeito com a proposta de Constituição”.
“Como presidente, aceito com humildade esta mensagem e a faço minha. É preciso escutar a voz do povo”, disse.
Como já havia adiantado semanas antes do pleito, o presidente se comprometeu a impulsionar rapidamente um novo processo constituinte que caberá aos legisladores conduzir, com a participação da sociedade civil.
Boric convocou as forças políticas a “colocar o Chile em primeiro lugar”. O presidente de 36 anos disse que, para atender às exigências feitas nas ruas, “o Congresso Nacional deve ser o principal protagonista.”
O Parlamento, com sede em Valparaíso, é 50% de direita. O restante é dividido entre independentes, socialistas e democrata-cristãos, também divididos nesse processo constituinte.
“Comprometo-me a fazer o máximo para construir, junto com o Congresso e a sociedade civil, um novo itinerário constituinte”, disse Boric, que convocou os presidentes do Congresso e representantes da sociedade civil para um encontro no Palácio de La Moneda (sede do governo) nesta segunda-feira.