O tal, o arrenegado, o cão, o cramulhão, o pé-de-pato, o sujo, o coisa ruim: o diabo não só tem mil nomes, como sua figura se tornou elemento central no início destas campanhas à Presidência da República. Em um sinal da importância do voto evangélico neste ciclo eleitoral, as principais candidaturas já trocaram acusações de possessão demoníaca, em discursos maniqueístas que indicam também um estado de fraqueza do debate democrático.
A novidade da vez é o recurso ao imaginário satânico por parte da campanha petista, em contra-ataques à retórica bolsonarista. Na largada da campanha na última terça-feira (16) no ABC paulista, conforme André Duchiade, O Globo, enquanto tecia críticas à postura do presidente durante a pandemia, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva elevou o tom e disse que Bolsonaro se comporta de modo diabólico:
— Você não derramou uma única lágrima para as 680 mil pessoas que morreram do Covid, você nunca se preocupou em saber quantos crianças estão órfãs porque você foi negacionista, não acreditou na ciência, não acreditou na Medicina — disse Lula, antes de completar. — Se tem alguém que é possuído pelo demônio é esse Bolsonaro.
No mesmo discurso, Lula disse que Bolsonaro “na verdade é um fariseu”, que “está tentando manipular a boa fé de homens e mulheres evangélicos, que vão à igreja tratar da sua fé, da sua espiritualidade.”
O discurso da luta do bem contra o mal e da suposta presença de Deus e do diabo nas eleições prosseguiu na campanha do PT nesta quarta-feira sob a assinatura do aliado Andrés Janones, que, em seu Twitter, escreveu, em maiúsculas, que “BOLSONARO USA DEUS. DEUS USA LULA!”
As mensagens são uma reação a ataques desferidos por aliados do presidente Jair Bolsonaro. Na semana retrasada, em visita à Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte — onde o assassino da atriz Daniela Pérez, Guilherme de Pádua, é pastor —, a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, disse que o palácio presidencial já esteve habitado entidades sobrenaturais malignas:
— Por muito tempo, aquele lugar foi um lugar consagrado a demônios. Cozinha consagrada a demônios, Planalto consagrado a demônios, e hoje consagrado ao senhor Jesus.
Já o deputado federal Marco Feliciano (PL-SP), repetindo um comportamento que emprega há anos, nas últimas semanas acusou Lula de ser “o pai da mentira” e disse que votar no líder do PT “é fazer pacto com o maligno”.
Expediente antigo
Por trás da linguagem inflamada está um expediente muito antigo, de demonização do adversário político, que acontece também em outros países (em abril, a deputada americana trumpista Marjorie Taylor Greene afirmou que a “Igreja Católica está controlada por satanistas”). Segundo pesquisadores, o emprego deste imaginário no Brasil tornou-se muito mais comum a partir das eleições de 2018 e da vitória de Bolsonaro:
— O uso religioso da figura do diabo da parte de políticos aumentou exponencialmente a partir de Bolsonaro. Ao longo de todo o mandato, ele fez referência à figura, buscando fidelizar o público neopentecostal e demonizar a oposição. Isso se torna ainda mais frequente durante as eleições — afirmou ao GLOBO o sociólogo André Ricardo de Souza, que coordena o Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política da Universidade Federal de São Carlos. — Da parte da oposição, vemos o uso da mesma linguagem, obviamente querendo se dirigir ao segmento pentecostal e buscando modo de expressão que seja entendido por esse público.
Ricardo de Souza, que já investigou o recurso à figura do diabo em igrejas evangélicas, diz que ela “é extremamente presente neste imaginário coletivo”, e cumpre duas funções.
— A primeira é econômica, com a intenção de compelir os fiéis a doarem para a igreja. Quando não contribuem, é porque o diabo estaria agindo — afirmou. — Já o segundo papel é político. Além de acusarem os oponentes de serem associados ao diabo, quando há um escândalo com algum membro da igreja, o indivíduo é demonizado e se preserva a instituição.
O filósofo Márcio Tavares D’Amaral, da Escola de Comunicação da UFRJ, observa que a palavra “diabo” vem do grego, significando “a força que separa”. A figura demoníaca, observa o estudioso, não consta na Bíblia, e nem faz parte do dogma da Igreja Católica. Qualquer disputa que a envolve, necessariamente, é maniqueísta, na qual existe o bem e o mal.
— A extrema direita trouxe a linguagem do “nós e eles”, e aí o PT também sente necessidade de usá-la — afirmou. — O lado de Bolsonaro criou uma oposição maniqueísta, com a necessidade de total exclusão do outro, inclusive a morte, se for necessário, porque diz representar o bem.
Tavares D’Amaral observa que o uso pela esquerda da mesma linguagem da extrema direita é “compreensível, mas perigoso”:
— A esquerda precisa trabalhar com o debate econômico, falar sobre a degeneração do padrão de vida e das mortes da pandemia. O seu foco deveria ser esse — afirmou — Se houver insistência neste ponto, o debate se desloca para o terreno dos costumes, que é onde a direita deseja travá-lo.
Segundo o historiador da Universidade Federal da Grande Dourados Leandro Seawright, que escreveu estudos sobre o uso da figura do diabo na política, da parte de Lula, “há um claro aceno aos evangélicos”, que contudo se dá “de forma tardia”. Segundo ele, se quiser resultados melhores, o PT precisa ir atrás de “líderes orgânicos” do meio evangélico, não se restringindo “àqueles próximos de líderes progressistas”.
— A esquerda ou parte dela não dialoga com os evangélicos como poderia, e agora se vê impulsionada ao diálogo — afirmou.
Seawright observa que a técnica de demonização do outro tem efeitos diretos sobre a democracia. Por meio do maniqueísmo e da diabolização, vários temas acabam sendo excluídos do debate público.
— Por meio da mobilização do imaginário, pautas acabam sendo questionadas e excluídas, e isso enfraquece a democracia. O imaginário mobilizado tem consequências diretas no campo político, não estamos só no âmbito da abstração — afirmou Seawright.