Durante séculos, o apêndice – esse órgão de forma cilíndrica que mede cerca de 10cm e está conectado à primeira parte do intestino grosso – foi um enigma.
Jacopo Berengario da Carpi, médico italiano, publicou a primeira descrição do apêndice em 1521, em seu Commentaria, e o descreveu como uma pequena cavidade vazia.
Leonardo da Vinci teorizou que era um lugar para reter o excesso de gás e evitar que os intestinos e o cólon explodissem durante crises de prisão de ventre.
A palavra “apêndice” foi usada pela primeira vez por Andreas Vesalius, em 1953, comparando o órgão a uma minhoca.
O botânico suíço Caspar Bauhin especulou em 1579 que era um receptáculo para as fezes do feto durante a gestação.
Sem uma teoria muito convincente, em seu livro sobre a teoria da evolução, em 1871, Charles Darwin propôs a hipótese de que o apêndice na realidade não tinha nenhuma função: era um órgão remanescente que havia perdido sua razão de ser “como consequência de mudanças na dieta ou nos hábitos”.
Foi provavelmente isso o que você aprendeu na escola.
Mas, em meados do século 20, com o desenvolvimento de ferramentas para observar nossos órgãos mais de perto, começou a se dissipar a ideia de que o apêndice não servia mais do que para se inflamar e colocar vidas em risco (por meio da apendicite).
E, no século 21, os cientistas têm descoberto que esse órgão está longe de ser apenas um pedaço em excesso.
Santuário
Em 2007, uma equipe do Centro Médico da Universidade Duke fez um grande avanço quando descobriu que o apêndice tinha uma rica biopelícula.
Trata-se de uma capa de bactérias benéficas, das que vivem em nosso intestino, formam nossa flora e ajudam a extrair energia e nutrientes dos alimentos. Além disso, quando elas digerem fibra, produzem ácidos graxos de cadeia curta que podem cruzar para a corrente sanguínea e proteger o cérebro.
O misterioso e desdenhado órgão passou então a ser visto como um reservatório dessas bactérias, prontas para repovoar o intestino quando as perdemos – por exemplo, em episódios de diarreia ou de ingestão de antibióticos.
Isso era algo que Darwin nunca poderia ter adivinhado, já que viveu muito antes que a ciência reconhecesse a existência do microbioma humano.
E havia algo mais.
Algumas décadas antes, se havia descoberto que o apêndice tinha uma alta concentração de tecido linfoide associado ao intestino (GALT, na sigla em inglês), mas até então não se sabia que isso ajudava a estimular o sistema imunológico no caso de um patógeno invasor.
Ou seja, além de servir de armazém de bactérias, está envolvido em compreender quando o intestino está ameaçado e em como responder ao perigo.
Mal-entendido
Seis anos mais tarde, outro estudo do centro médico de Duke identificou que as pessoas sem apêndice tendem a ter risco maior de uma infecção bacteriana desagradável e perigosa: Clostridium difficile, ou C diff.
Mas os cientistas também descobriram algo que lhes pegou de surpresa: os anti-evolucionistas haviam se aproveitado de suas pesquisas.
Isso porque, inadvertidamente, haviam negado algo dito por Darwin – e justamente em um dos exemplos mais comuns e populares citados como evidência da seleção natural das espécies.
Os pesquisadores, afirmam os criacionistas, haviam demonstrado que a teoria da evolução era inválida.
“Darwin estava errado (ao supor) que o apêndice fosse vestigial”, explicou à BBC Heather Smith, professora de anatomia na Universidade Midwestern, no Arizona (EUA), que esclarece com veemência: “Isso não significa que ele estivesse errado quanto às teorias da seleção natural e da nossa compreensão da adaptação.”
De fato, as próprias pesquisas de Smith demonstraram que, longe de solapar a teoria da evolução, o apêndice a confirma.
Milhões de anos
Em 2017, Smith e seus colegas decidiram comparar o apêndice humano com o de 533 espécies de mamíferos.
Revelando uma história de mais de 80 milhões de anos, construíram uma espécie de grande árvore genealógica dos mamíferos, com a qual é possível mapear dados e estimar quantas vezes as espécies evoluíram em uma característica em particular – neste caso, no apêndice.
“Determinamos que o apêndice evoluiu ao redor de 30 vezes ao longo da evolução dos mamíferos, e isso implica que ele cumpre uma função importante, caso contrário não seguiria aparecendo na evolução.”
Em termos evolutivos, se um órgão aparece, permanece e não desaparece, trata-se de um bom indicador de que ele é útil de alguma maneira. Mais ainda se isso acontece em várias linhagens de mamíferos diferentes.
Eixo intestino-cérebro
Agora, o apêndice é foco de estudos que tentam compreender melhor sua função. Um deles, publicado em julho de 2021 por pesquisadores do Inserm e do Museu Francês de História Natural e inspirado pela grande árvore genealógica da equipe de Smith, analisou dados em 258 espécies de mamíferos e viu que a presença do apêndice pode estar relacionada a uma maior longevidade.
Ao mesmo tempo, algumas pesquisas sugerem uma conexão – ou eixo – entre o intestino e o cérebro.
“Uma das áreas mais empolgantes da ciência do cérebro e da neurologia no momento é a crescente percepção dos intestinos e da microbiota intestinal nas doenças neurodegenerativas”, diz à BBC o professor John Cryan, da Universidade de Cork (Irlanda), especialista no tema.
As pesquisas ainda são ambíguas, mas segundo ele “uma coisa é clara: não podemos ignorar o apêndice no que diz respeito à sinalização entre cérebro e intestino”.
Apendicite
Mas existem casos em que realmente não podemos manter nosso apêndice.
Embora um número crescente de estudos (entre eles uma meta-análise de pesquisas com 404 pacientes pediátricos) tenha apontado que, em casos de apendicite não grave, seja possível tratar a infecção com antibióticos (na tentativa de evitar uma cirurgia para a extração do apêndice), essa ainda não é considerada uma opção segura.
Um apêndice perfurado, canceroso ou gravemente machucado é uma emergência médica grave com consequências potencialmente fatais, por isso precisa ser extirpado.
E não só está comprovado que podemos viver uma vida plena e feliz sem ele, como também nada das descobertas científicas indica que a cirurgia de remoção do apêndice tenha um efeito sobre a longevidade.
A apendicite na juventude – tratada com a cirurgia de remoção – é tida como benéfica, por fortalecer uma educação do sistema imunológico que o permita combater infecções posteriores com eficiência.
O que a história recente desse pequeno pedaço da nossa anatomia nos ensina é que o corpo humano é extremamente complexo – e ainda nos resta muito a compreender.