O esforço do governador João Doria (PSDB) de apresentar sua gestão em São Paulo como eficiente e comprometida apenas com a ciência esbarra no ritmo da campanha de vacinação contra a covid-19 nas cidades paulistas e no vaivém de medidas de isolamento social. A vacinação no Brasil começou no território paulista e Doria conseguiu fazer a primeira fotografia, minutos depois de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovar o uso emergencial da Coronavac e do imunizante da AstraZeneca/Oxford. Mas, hoje, os municípios paulistas ainda não terminaram de se organizar para aplicar as vacinas e, sobretudo, para registrar no sistema as que já foram injetadas —o próprio Governo admite que há problemas de subnotificação a serem solucionados. Assim, os dados mostram que a campanha em São Paulo avança, proporcionalmente, mais lentamente na imunização dos grupos prioritários em comparação com outras unidades da federação, como Paraná, Rio Grande do Norte ou Bahia.
Por ser o território mais povoado do Brasil, com mais de 46 milhões de habitantes ―o equivalente à população da Espanha toda―, São Paulo é, consequentemente conforme o El País, o Estado que mais aplicou doses de vacinas contra o coronavírus no país —um total de 749.188 até sexta-feira, 5 de fevereiro. Mas essa cifra representa 33,03% das 2.268.040 doses já disponibilizadas pelo Ministério da Saúde para os paulistas. De acordo com o levantamento do consórcio de veículos de imprensa a partir dos dados das secretarias estaduais, São Paulo estava atrás de outras 17 unidades da federação até a sexta. As que mais utilizaram as doses disponíveis são Distrito Federal (aplicou 58,68% das doses de imunizantes recebidas pela unidade), Paraná (utilizou 56,32% das doses recebidas pelo Estado), Rio Grande do Norte (55,47%), Espírito Santo (54,48%) e Bahia (50,12%). São Paulo estava abaixo inclusive da média nacional: até a mesma data, 3.366.706 de doses haviam sido aplicadas em todo o Brasil, referente a 37,79% dos lotes recebidos pelos Estados a somente 1,59% da população brasileira.
As cifras acima são referentes ao total de doses recebidas por cada Estado através do Programa Nacional de Imunizações. A maioria é da Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac. Como uma pessoa deve receber duas doses em um intervalo de 28 dias, o Ministério da Saúde orienta que os Estados distribuam metade do que receberam de Coronavac para os municípios e armazenem a outra metade. Assim, considerando apenas o estoque disponível para dar a primeira dose da vacina, as cidades da Bahia —o quarto território mais povoado do país, com mais de 14 milhões de habitantes— já utilizam 78,5% das 351.500 doses disponíveis. Já o Governo de São Paulo distribuiu cerca de 1,7 milhão de primeiras doses para seus municípios, que já aplicaram cerca de 45% desse total, segundo os dados da Secretária Estadual da Saúde.
O Estado de São Paulo aparece atrás em outros indicadores de vacinação. As pessoas a partir de 90 anos começariam a ser vacinadas a partir de segunda-feira, 8 de fevereiro —mas na capital paulista, o calendário foi adiantado para sexta, quando a Gestão de Bruno Covas (PSDB) diz ter vacinado mais de 29.000 pessoas dessa faixa etária. Até a sexta, a Bahia já havia vacinado 29.414 idosos com mais de 90 anos e se preparava para vacinar os maiores de 85 anos no dia 8 e os maiores de 80 a partir do dia 11. Para os paulistas acima de 85 anos, a previsão é de que a vacinação comece no dia 15 de fevereiro.
Mesmo com o estoque de vacinas ainda cheio, o cronograma da vacinação de São Paulo em fevereiro não vai além dessa data —enquanto a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, tem previsto vacinar os cariocas acima de 75 anos até o fim deste mês. A justificativa, comum a todos os Estados, é a de que o calendário vai sendo atualizando conforme novas remessas de imunizantes cheguem. “Temos uma 8 milhões de pessoas acima de 60 anos no Estado. Territorialmente, tudo para nós é um volume maior. É mais fácil avançar quando a população é menor. Precisamos que o Governo Federal compre mais vacinas”, argumenta Regiane Cardoso de Paula, coordenadora de Controle de Doenças do Estado de São Paulo.
Desafio tecnológico e subnotificação
Quais são as outras diferenças de São Paulo, o território mais povoado e também melhor estruturado, com relação a outros Estados? A coordenadora fala sobre o desafio tecnológico imposto pela campanha contra a covid-19. Ela explica que o Governo Doria fez a distribuição dos imunizantes e pactuou com os municípios, responsáveis pela aplicação das doses, o registro de cada injeção dada. A gestão estadual desenvolveu uma plataforma, VaciVida, com os dados das pessoas que recebem a vacina. Cada uma será alertada por SMS quando estiver se aproximando do dia de tomar a segunda dose, explica De Paula, ao falar sobre a importância do sistema.
“É a primeira vez que a rede usa um sistema nominal. Fizemos uma ação conjunta com os municípios, enviamos vários tutoriais e mantemos o contato. Nesta semana mandamos equipes para cinco municípios para que verificassem dúvidas”, explica a coordenadora. Ela reconhece que, por ser um sistema online, os gestores municipais estão encontrando dificuldade para inserir os dados dos vacinados, o que vem gerando um problema de subnotificação. “Estamos fazendo uma força-tarefa para inserir esses dados”, garante.
Especialistas chamam atenção para o fato de que o tamanho da população de São Paulo por si só já impõe um desafio de organização para as autoridades sanitárias —sobretudo nessa primeira etapa da campanha, com escassez de imunizantes e a necessidade de se evitar fraudes e pessoas furando filas. De acordo com De Paula, todos os lotes de vacinas enviados ao municípios paulistas estão registrados no sistema do Governo estadual e são monitorados e rastreados. Com esse controle, assegura, o risco de fraudes diminui consideravelmente.
Os obstáculos também dizem respeito à estrutura montada para a aplicação de doses. O médico epidemiologista Paulo Lotufo, professor de medicina da USP, chama atenção para a forma que os imunizantes estão sendo distribuídos na capital paulista. “Está muito pulverizado em hospitais e UBS [Unidade Básica de Saúde]. Funciona de 8h às 17h, sem contar o horário de almoço”, explica. “É possível montar grandes centros de vacinação no estádio Pacaembu, ginásio do Ibirapuera, Autódromo de Interlagos, estacionamentos… Faz um esquema de linha de produção com a primeira vacina sendo dada às 7h da manhã e a última às 22h. Vai gerar muita rapidez”, defende.
Na última quarta-feira, o Governo paulista anunciou cinco pontos de drive-thru para vacinar idosos na capital: em frente ao estádio do Pacaembu; na entrada da arena Corinthians; no autódromo de Interlagos; no pavilhão de exposições do Anhembi (zona norte); e na igreja Boas Novas, na Vila Prudente. De acordo com a coordenadora de Controle de Doenças do Estado, o Governo Doria é responsável pela distribuição das doses, cabendo aos municípios fazer a aplicação —e, portanto, a organização de suas estruturas de vacinação.
Vaivém na quarentena
Os paulistas também assistiram nas últimas duas semanas a um vaivém em medidas de distanciamento social, alteradas com pressa devido à pressões se setores da economia sem que houvesse tempo para verificar a efetividade do ponto de vista epidemiológico. Nesta sexta-feira, 5 de fevereiro, Doria anunciou em entrevista coletiva a flexibilização da quarentena em São Paulo, diante da queda na taxa de ocupação de UTIs. Foi a segunda vez nas últimas duas semanas que a gestão estadual flexibilizou a quarentena, após um importante endurecimento no dia 22 de janeiro.
Na ocasião, o governador havia instituído a fase vermelha, a de maior restrição do Plano São Paulo, durante os finais de semana em todo o território paulista. Nessa, fase, somente os serviços considerados essenciais, como supermercados e farmácias, estavam autorizados a funcionar. O objetivo era reduzir as aglomerações, sobretudo em bares e restaurantes. Porém, a medida só passou a valer no fim de semana do dia 30 de janeiro. E, diante do protesto de setores econômicos, a gestão estadual recuou dias depois, na última quarta.
O Governo também havia instituído a fase vermelha durante toda a semana, dia e noite, em sete Departamentos Regionais de Saúde, que concentram 22% da população paulista. O restante, incluindo os municípios da Grande São Paulo, permaneceu na fase laranja, a segunda de maior restrição, durante a semana. A pandemia se agravava sobretudo no interior e no litoral, com a disparada de novos casos e óbitos e uma taxa de ocupação dos leitos de de UTI que chegava a 100% nos hospitais de referência.
As medidas valiam até 8 de fevereiro, mas Doria deu um passo atrás antes do prazo estipulado pela sua gestão. Na sexta-feira, passou seis regiões do Estado (66%), entre elas a Grande São Paulo, para a fase amarela, a terceira de maior restrição. Outras oito regiões (27% da população) permanecem na fase laranja. E somente três regiões (8% da população) seguem na fase vermelha. De acordo com o Governo estadual, a flexibilização se deu por causa da queda de ocupação nos leitos de UTI, que foi para 67,4% no Estado e 66,3% na Grande São Paulo.
De acordo com dados do Ministério da Saúde, São Paulo concentrava até este sábado 54.545 dos 231.012 óbitos causados pela covid-19 registrados no Brasil. Em suas redes sociais, o governador argumentou que o recuo das medidas de isolamento social ocorrida devido à “melhora na situação da pandemia” no Estado, mas reiterou a recomendação de adotar “medidas de prevenção, como uso de máscaras e não promover aglomerações.”