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sábado 27 de maio de 2023 às 08:41h

Visionário ou criminoso de guerra? Os 100 anos de Kissinger

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Ex-secretário de Estado americano é exaltado pela capacidade diplomática, mas também alvo de condenação por decisões que custaram milhares de vidas durante a Guerra Fria.

Após uma visita ao Palácio de Versalhes, nos arredores de Paris, nos anos 1970, jornalistas perguntaram a Henry Kissinger a sua impressão sobre a majestosa Galeria dos Espelhos. Ele disse que achou “maravilhoso”, uma vez que se viu “cercado de gênios”.

Para seus apoiadores, Kissinger é um verdadeiro gênio da diplomacia que continua a dominar como ninguém a arte de discernir o que é politicamente viável. Para seus críticos, ele é um criminoso de guerra. Mas, para a maioria, seu legado político se localiza entre essas duas interpretações.

Mais interessado no futuro do que no passado

Na época em que atuou primeiramente como assessor de política externa e, mais tarde, como secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, ele contribuiu para pôr fim à guerra no Vietnã, criar uma distensão com a União Soviética, abrir relações entre os Estados Unidos e a China comunista, remover do poder líderes democraticamente eleitos e redesenhar as fronteiras de vários países.

Depois de deixar o governo, ele passou a oferecer “consultoria geopolítica” para inúmeros líderes internacionais mantidos no anonimato através de sua firma de consultoria Kissinger Associates.

Mesmo 100 anos após Heinz Alfred Kissinger nascer em uma família judia na cidade de Fürth, na Baviera – seu sotaque continua a revelar suas raízes alemãs -, ele ainda é visto como um peso-pesado na política externa internacional e contribui com suas opiniões em temas de geopolítica.

Recentemente, ele foi coautor de uma carta alertando contra os perigos que inteligência artificial (IA) representa para o mundo. Ao colocar a IA no mesmo patamar de perigo das armas nucleares, ele alerta seus jovens colegas que este é um “problema totalmente novo”. Trata-se de um alerta bastante sério vindo de um homem que já viu de tudo.

“O fim justifica os meios”

Em novembro, Kissinger chamou atenção ao lançar um apelo por uma paz negociada na guerra de agressão da Rússia na Ucrânia. O pedido veio em um momento em que os aliados ocidentais de Kiev apenas começavam a ampliar de maneira substancial seu apoio militar ao país invadido.

Enquanto Kissinger argumentava que as conversações se faziam necessárias para evitar outra guerra mundial de efeitos devastadores, Kiev o acusava de “aplacar o agressor”.

Ken Lieberthal, que trabalhou com Kissinger em diversas ocasiões nas últimas décadas, avalia que o centenário possui uma “clara visão do que é necessário ser feito” e de “como chegar até lá”. A abordagem de Kissinger exige uma “avaliação não sentimental das capacidades”, explicou.

Kissinger, um dedicado proponente da chamada Realpolitik, forneceu de maneira ainda mais direta sua própria descrição de seu pensamento sobre o conflito: “os fins justificam os meios”.

As críticas ucranianas não abalaram Kissinger. No que diz respeito a lidar com a Rússia, Kissinger, que arquitetou a política de distensão dos EUA nos anos 1970, pode alegar que ele mesmo já esteve à beira de uma guerra com os russos.

Mais tarde, ele descreveria a distensão como uma “estratégia para reger o conflito com a União Soviética” que possibilitou aos dois lados mais tempo para diplomacia e evitou um conflito direto.

Em uma rara mudança de opinião, ele agora apoia a adesão da Ucrânia à Otan, depois de chegar à conclusão de que “a ideia de uma Ucrânia neutra nessas condições” não seria mais algo “significativo”.

Mas, sua tendência a enxergar os princípios das leis internacionais e dos direitos humanos como não primordiais, mas somente como um fator em sua equação política, gera repulsa dos defensores dos direitos humanos à simples menção do seu nome.

O senador democrata americano Bernie Sanders, líder da esquerda nos EUA, afirmou que tem “orgulho em dizer que Henry Kissinger não é meu amigo”. Ele o chama de “o secretário de Estado mais destrutivo da história moderna”, em razão de suas políticas para a Ásia nos anos 1970.

“Percorrendo uma corda bamba”

Kissinger descreveu suas opiniões com frequência controversas sobre liderança estratégica como “percorrer uma corda bamba” que esteja “suspensa entre as certezas relativas do passado e as ambiguidades do futuro.”

Ele escreveu extensivamente sobre seu processo de tomada de decisões, que, inclusive, o fez esconder os bombardeios dos EUA no Camboja do público americano. Os Estados Unidos tinham como alvo os guerrilheiros comunistas que usavam o país vizinho ao então Vietnã do Sul como base, mas acabaram criando uma crise que culminou na ascensão do regime assassino do Khmer Vermelho, que, segundo estimativas, matou mais de 2 milhões de pessoas.

Kissinger conseguiu assegurar um cessar-fogo que levaria ao fim da guerra no Vietnã. O plano fez com que ele e seu homólogo norte-vietnamita Le Duc Tho fossem agraciados com o Prêmio Nobel da Paz.

Somente Kissinger aceitou o prêmio. Mais tarde, ele tentou devolvê-lo após uma tentativa de negociar a paz fracassar de maneira retumbante com a queda da capital do Vietnã do Sul, Saigon, para os comunistas.

As decisões que ele tomou custaram dezenas de milhares de vidas no Vietnã, Camboja e Laos e ainda em países como Chile. Quando Kissinger fala em público – o que ainda faz até hoje – fica bem claro que ele está ciente e não teme as graves consequências de suas ações.

Documentos do Arquivo Nacional dos EUA datados dos anos 1970, divulgados 40 anos mais tarde, provam que ele pressionou Nixon para remover do poder o presidente socialista democraticamente eleito no Chile Salvador Allende em 1973, porque acreditava que o modelo de governo chileno poderia ser “traiçoeiro” para os interesses americanos na região.

Ao fazê-lo, Kissinger acabou contibuindo para a ascensão do ditador Augusto Pinochet, cujo governo torturou e matou milhares de pessoas.

Efeito duradouro nas relações EUA-China

“Ele sempre raciocinou em termos de um tipo de equilíbrio de poder”, afirmou Lieberthal sobre o apoio de Kissinger a intervenções em processos democráticos alheios.

Segundo seu colaborador, Kissinger se guia pelo cálculo de que “o predomínio de um país levará a esforços dos demais”. O fato de ignorar a instabilidade que tal reação em cadeia poderia produzir levou Kissinger a intermediar o histórico reconhecimento da China pelo presidente Nixon em 1972, uma política que continua a amarrar os EUA ao princípio de que “Taiwan é parte da China”.

As tensões atuais no Estreito de Taiwan e os temores de uma guerra em torno do território ultramarino marcam a extensão da liderança de Kissinger na política externa americana, desde os anos 1970 até os dias atuais.

Ele, no entanto, pode alegar ter identificado com décadas de antecedência a trajetória da China para tornar uma potência global, muito antes da maioria de seus colegas.

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