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terça-feira 8 de fevereiro de 2022 às 05:10h

Virtualização da Justiça se intensifica no Brasil, gera ganhos e impõe desafios

DESTAQUE, JUSTIÇA, NOTÍCIAS


Os tribunais brasileiros vivenciavam diferentes estágios de virtualização quando, a partir de março de 2020, a pandemia da Covid-19 impôs uma nova dinâmica de funcionamento que impactou a rotina de magistrados, promotores, advogados, defensores públicos e de milhares de brasileiros.

Especialistas destacam que a virtualização trouxe pontos positivos, como maior rapidez de tramitação e melhores índices de produtividade.

Porém uma parcela deles ressalta que também há aspectos negativos que precisam ser observados, como risco de violação de direitos fundamentais e menor acesso à Justiça pelos mais vulneráveis.

Levantamento feito pela Folha mostra que a maior parte das cortes estaduais (56%) adotou o sistema de audiências virtuais neste período, enquanto outras tiveram experiências anteriores com o modelo.

Com a suspensão inicial das atividades do Judiciário de março a abril, o número de audiências na primeira instância da Justiça Estadual antes e depois da pandemia diminuiu em todos os tribunais. No cenário nacional, a queda foi de 61%, passando de cerca de 6,2 milhões em 2019 para 2,4 milhões.

Até a conclusão da reportagem, apenas os tribunais de Maranhão, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Tocantins não haviam respondido aos questionamentos do jornal.

Em relação a processos julgados na mesma esfera, de acordo com números do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), houve uma redução de cerca de 22% no país. Pernambuco e Paraná registraram aumento de processos resolvidos.

Passados quase dois anos, falta uma legislação sobre o tema, que tem sido regulado por meio de resoluções do CNJ e dos próprios tribunais.

Também nesse período, sob a gestão do ministro Luiz Fux, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), o CNJ lançou o programa Justiça 4.0, que tem entre suas propostas a implementação do Juízo 100% digital –que prevê a tramitação de processos de forma exclusivamente eletrônica a partir do consentimento dos envolvidos.

Atualmente, os tribunais brasileiros usam programas para audiências virtuais e sistemas para serviços de Justiça diferentes.

São pelo menos 11 sistemas para processos eletrônicos e 9 programas de vídeoconferência. O objetivo do CNJ, explica Shuenquener, é unificar todo o sistema judiciário brasileiro sob uma única plataforma que tenha ao mesmo tempo vídeoconferência e serviços de Justiça.

A avaliação é que essa transição para uma plataforma única nacional requer cautela, devido à desigualdade digital no país.

Dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio) de 2019, do IBGE, mostram que cerca de 40 milhões de brasileiros com mais de 10 anos ainda não têm acesso à internet.

Para Valter Shuenquener, secretário-geral do CNJ, a exclusão jurídica no país é maior do que o número de desconectados.

“Há mais pessoas com acesso à internet do que à Justiça no Brasil. Já fiz muitas audiências com pessoas em comunidades muito carentes em que as pessoas tinham um celular e estavam ali, prestando depoimento”, diz.

No Tribunal de Justiça de São Paulo, a juíza Jovanessa Ribeiro Silva Azevedo Pinto, assessora da presidência e ex-assessora da Corregedoria Geral da Justiça em 2020 e 2021, diz que a avaliação sobre o acesso melhorou e que é possível realizar o atendimento presencial quando necessário, para que não haja prejuízo à população.

Em 2022, a maioria dos tribunais deve seguir usando o sistema híbrido, de maneira que casos sensíveis como audiências de custódia e júri popular possam ser julgados presencialmente.

De acordo com o 2º Mapa das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital no Brasil, feito pela Anadep (associação dos defensores públicos) e pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) cerca de 58 milhões de pessoas não têm acesso à Justiça devido à falta de defensores públicos.

Francisco Cruz, diretor do InternetLab —centro de pesquisa sobre direito, tecnologia e internet— explica que ter acesso à internet não basta. A falta de conhecimento sobre as ferramentas também é uma barreira e cada região tem seus próprios desafios.

Além disso, a baixa qualidade do serviço de internet em algumas regiões pode levar à redução do acesso à Justiça. Cruz explica que a dinâmica do acesso à internet com qualidade é similar ao acesso à alimentação saudável, “não adianta só ter a comida, ela precisa ter qualidade”.

A ouvidora da Defensoria Pública do Acre, Solene Costa, 48, trabalha na capital Rio Branco e diz conhecer bem o problema. Ela conta que as quedas do sinal de internet são constantes.

A situação é ainda pior em Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do estado, em que moradores já chegaram a ficar até três dias sem acesso ao WhatsApp, diz ela.

O aplicativo de mensagens se tornou a via de comunicação entre a população que busca a Justiça e os 43 defensores públicos do estado. Eles são responsáveis por atender a 22 municípios e uma população estimada pelo IBGE em 906 mil habitantes.

“As pessoas hipervulneráveis não acessaram a Justiça, porque, ainda que usem o WhatsApp, não têm dados móveis suficientes para mandar os documentos aos defensores”, diz Solene.

De acordo com a PNAD Contínua de 2019, a região Norte do país é a que concentra o maior número de domicílios que dependem de banda larga móvel, a internet no celular. Em 89% das residências em que havia utilização da internet, o acesso ocorria por meio da banda larga móvel.

Em São Paulo, o ex-presidente da seccional da OAB, Caio Augusto Silva dos Santos, afirma que o problema da conexão não afetou apenas quem vive em regiões afastadas do estado, mas que há localidades na região central da capital paulista em que a qualidade do sinal é ruim.

“Nós ouvimos muito, no início da pandemia, que bastaria um celular para que assistidos e advogados pudessem ter acesso às audiências e atos judiciais, mas isso não é verdade”, afirma.

Santos diz que, apesar dos desafios, houve inclusão para a advocacia e cita a possibilidade de fazer a sustentação oral à distância como exemplo —avanço citado também pelo ex-presidente da OAB Nacional Felipe Santa Cruz, que defende a volta das audiências de forma presencial.

Quando o assunto é produtividade, o presidente da Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), Manoel Murrieta, diz que houve um crescimento surpreendente na produção processual com as ferramentas digitais, mas que é preciso observar a situação de regiões com baixa inclusão digital.

Murrieta afirma que o problema também aparece nas audiências de custódia, que demandam interação maior para que o juiz tenha certeza que não houve violação de direitos.

A percepção no Judiciário paulista é a de que, mesmo na esfera penal, houve avanços.

A juíza Jovanessa afirma que foram criadas 684 salas virtuais desde o início da pandemia nas 179 unidades prisionais do estado, o que permitiu a realização de mais de 162 mil audiências, sem necessidade de requisitar transporte para longas distâncias.

O uso das audiências virtuais nos processos penais é um dos pontos criticados por defensores públicos e instituições de direitos humanos que afirmam que a prática contribuiu para a subnotificação de denúncias de violações.

A segurança de mulheres vítimas de violência doméstica, por exemplo, é um fator de preocupação nas audiências virtuais, diz Rivana Ricarte, presidente da Anadep (Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos).

“Como garantir que a mulher esteja segura em uma audiência virtual em casa e que seu agressor não estará do outro lado da tela, na mesma casa?”, diz a defensora, que também destaca problemas em casos de audiências com pessoas com deficiência ou menores de idade infratores.

A retomada do atendimento presencial em casos que atentem contra os direitos fundamentais é uma necessidade apontada pela pesquisa “Justiça Virtual e o Direito de Defesa”, realizada pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).

De acordo com o estudo, que analisou atos normativos em todo o país e entrevistou familiares de pessoas privadas de liberdade, defensores públicos e ouvidores, o uso da tecnologia aprofundou a distância entre a Justiça e a população.

Uma das consultoras da pesquisa, a advogada Luciana Garcia, doutora em direito pela Universidade de Brasília e professora do IDP, afirma que a pandemia trouxe à tona uma situação de profunda desigualdade na Justiça virtual pelo país.

“Se hoje há tribunais praticamente 100% digitalizados, como no Distrito Federal, por outro lado há situações como a do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que mais da metade dos processos ainda eram exclusivamente físicos”, diz.

Luciana acrescenta que é possível falar em ganhos nesse período, mas que eles vieram a custas de muitos sacrifícios e da falta de acesso à Justiça por parte da população de baixa renda e escolaridade.

“O cenário da pandemia trouxe isso trouxe um aprofundamento da violação do acesso à Justiça e do direito de defesa particularmente. Isso a gente ouviu de praticamente todas as pessoas entrevistadas”.

Apesar da dificuldade, ela afirma que não é possível analisar o processo de virtualização apenas como bom ou ruim.

“O WhatsApp facilitou o contato do assistido com o defensor público em alguns casos, em outras situações foi justamente isso que afastou. Por quê? Porque faltou olho no olho”.

Profissionais e pesquisadores concordam que, a partir de agora, o desafio será verificar em quais casos a Justiça virtual pode ser usada sem danos aos direitos.

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