A lei eleitoral estipula que o dinheiro faz parte de uma ação afirmativa direcionada a candidaturas de homens pretos e pardos e mulheres. Por isso, não pode ser dividido com candidatos homens, a não ser que beneficie as duas campanhas, o que foi pouco notado pela reportagem. Nesses casos, especialistas avaliam que a legislação prevê restituição ao Tesouro Público e até a perda do mandato.
A soma do dinheiro doado sem a justificativa chegou a R$ 10,2 milhões, 69.54% dos cerca de R$ 14,75 milhões enviados em 248 doações a candidatos homens brancos por cotistas com dinheiro do FEFC (Fundo Especial de Financiamento e Campanha), o Fundo Eleitoral. Este dinheiro foi enviado por 61 mulheres (R$ 2,7 milhões) e por 88 candidatos negros (R$ 7,5 milhões).
Por que a prática pode ser ilícita?
Permitida pelo TSE, a doação entre candidatos precisa especificar a origem do recurso e sinalizar os documentos de transferência.
Pessoas contempladas pelas cotas podem contribuir com outros candidatos desde que as despesas as beneficiem. Exemplo desse retorno são as campanhas “casadas”, com a presença dos dois em santinhos, cards de redes sociais, fotografias, áudios, vídeos ou aparições em programas de TV.
Como as candidaturas concluídas no primeiro turno tiveram de prestar as contas finais até o dia 1º de novembro e para devolver a verba não usada do fundão ao Tesouro Nacional, já é possível saber quem obedeceu a regra.
Como não houve justificativa para R$ 10,2 milhões enviados por cotistas, o sistema do TSE exibiu o registro “#NULO#”. Dentre os homens brancos destinatários desse valor, 195 não citaram a contratação de serviços “casados” com o doador, 17 mencionaram apenas para parte da doação e 10 especificaram como todo o dinheiro foi gasto.
Para a coordenadora-adjunta da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), Ana Márcia Mello, o uso irregular de verba tem várias consequências:
- dificulta a transparência sobre gasto eleitoral;
- restringe a efetividade da política afirmativa;
- pode resultar na cassação dos envolvidos.
O art. 30-A [da Lei das Eleições] autoriza o ajuizamento de uma representação por arrecadação e gasto irregular de campanha, que pode culminar até mesmo com a cassação do mandato.”Ana Márcia Mello, da Abrade
Em resposta ao UOL, o TSE informa que avalia ilicitudes caso a caso e que a clareza de como os candidatos cotistas tiveram retorno não é exigida. Citando regra de 2019, o tribunal eleitoral afirmou ainda que:
Na hipótese de repasse de recursos do FEFC em desacordo com as regras dispostas neste artigo, configura-se a aplicação irregular dos recursos, devendo o valor repassado irregularmente ser recolhido ao Tesouro Nacional.”
Os cinco homens brancos que mais usaram a verba delas
O governador eleito do Pará Helder Barbalho (MDB-PA) é o líder do top 5 de candidatos brancos homens que mais gozaram do FEFC destinado a candidaturas femininas e não detalharam totalmente como gastaram o dinheiro.
Foram R$ 300 mil recebidos de sua mãe, Elcione Therezinha Zahluth Barbalho (MDB), que se elegeu deputada federal também pelo Pará. Destinatária de R$ 2,5 milhões do FEFC, ela foi a mulher que doou o valor mais alto a um candidato branco.
Eleito no primeiro turno, Helder citou gasto de R$ 232.910 em campanha impressa “casada” com a mãe, mas não revelou como aplicou os R$ 67.090 restantes. Na relação das dívidas, Helder ainda precisa quitar R$ 1.204.733,34, mas não há menção sobre devolução da verba que sobrou da doação da deputada federal eleita.
Elcione não esconde a doação para a campanha do filho, mas, em sua prestação de contas, registra o envio a Hana Ghassan Tuma, vice-governadora na chapa de Helder. Ela fez outras doações com dinheiro do FEFC, no valor de R$ 350 mil, mas todas destinadas a outras mulheres.
Próximo da lista, o deputado estadual eleito Cirone Deiró (União Brasil-RO) recebeu R$ 135 mil de Mary Braganhol (União Brasil), que não se elegeu para deputada federal pelo mesmo estado e foi a chefe de gabinete dele na Assembleia Legislativa de Rondônia.
Nomes famosos também aparecem na lista. Em terceiro lugar, o ex-BBB Adrilles Jorge (PTB-SP), que não se elegeu para a Câmara dos Deputados, obteve R$ 133 mil de Cris Godoy (PTB) e R$ 125 mil de Valéria Bernardo (PTB), ambas candidatas não eleitas à Assembleia Legislativa de São Paulo. Em sua prestação de contas, Adrilles não informa como usou o dinheiro. Além disso, o candidato possui uma dívida de R$ 63.494,15 registrada nos dados abertos do TSE.
O valor enviado por Cris Godoy representa 48.36% do FEFC recebido por ela, enquanto o doado por Valéria é mais da metade da cota de R$ 245 mil recebida. Além disso, esta última candidata gastou só R$ 14,3 mil com a própria campanha.
O quarto do ranking é Mitter Mayer Volpasso Borges (PP), deputado estadual suplente do Espírito Santo que obteve R$ 110 mil da mãe, Gesyane Rodrigues Volpasso Borges, a Nane (PP), deputada federal suplente pelo mesmo estado. Enquanto ele recebeu 1.804 votos, ela, que usou R$ 524.066,04 para campanha, obteve só 1.107.
O último dos cinco homens brancos que mais receberam recursos do FEFC feminino é Jairo Lima da Silva, o pastor Jairinho (União Brasil). Candidato a deputado federal por Pernambuco não eleito, ele recebeu R$ 100 mil de Socorro Pimentel (União Brasil), que concorreu sem sucesso à Assembleia Legislativa pernambucana. Até o momento, ele não entregou a prestação de contas.
Para o advogado Adriano Alves, especialista em processo eleitoral da Abradep, os recursos do fundão eleitoral direcionados a candidatos enquadrados em cotas não poderiam ser usados nem em propagandas “casadas”.
A doação de recursos financeiros recebidos por mulheres do FEFC a candidatos homens não é conduta regular. A cota de gênero é para impulsionar as candidaturas femininas, dando condições de igualdade financeira e diminuindo a discriminação contra a mulher.”Adriano Alves, membro da Abradep
O UOL entrou em contato por e-mail com Helder Barbalho, Elcione Therezinha Zahluth Barbalho, Mary Braganhol, Adrilles Jorge, Cris Godoy, Valéria Bernardo , Gesyane Rodrigues Volpasso Borges, Jairo Lima da Silva, Socorro Pimentel, que não responderam até a publicação desta reportagem. Apenas Mitter Mayer Volpasso Borges e Cirone Deiró retornaram. O primeiro disse que buscaria com a contabilidade documentos comprobatórios da campanha “casada” com a de Nane e enviaria em seguida, mas não fez isso. Cirone informou que o caso foi enviado para o setor de prestação de contas.
Homens negros a serviço de homens brancos
Do lado dos homens negros (pardos ou pretos) que enviaram parte do FEFC sem justificar a utilização a homens brancos, o campeão é o Major Vitor Hugo (PL), que disputou sem sucesso o governo de Goiás. Ele não só doou R$ 830 mil a 19 candidatos, que não o citaram na descrição de gasto “casado”, como ainda declarou ter arcado com despesas para divulgar a campanha de todos eles, em sua maioria policiais militares e civis, além de militares do Exército.
O segundo da lista é o Juiz Odilon (PSD), que perdeu a disputa pelo Senado por Mato Grosso do Sul. Ele doou a outros candidatos R$ 760 mil, 27,14% da cota de R$ 2,8 milhões. Boa parte da verba foi destinada a uma só família, os Trad:
- Fábio Trad (PSD-MS) deputado federal não eleito: R$ 450 mil;
- Otávio Trad (PSD-MS), deputado estadual suplente: R$ 100 mil.
As candidaturas dos três junto à de Marquinhos Trad estiveram fortemente vinculadas. O candidato a senador aparece várias vezes em cards de redes sociais com a família, mas na prestação de contas dos destinatários da doação não há qualquer menção a campanha “casada” e qual valor foi gasto para isso.
Em terceiro lugar, o deputado federal suplente Jovair (Republicanos-GO) enviou R$ 500 mil, 65,36% de sua cota, a Clécio Alves (Republicanos), que se elegeu deputado estadual pelo mesmo estado.
Empatados no quarto posto, Vilmar da Silva Rocha (PSD), derrotado para o Senado por Goiás, e o deputado federal eleito Eli Borges (PL-TO), doaram, cada um, R$ 290 mil a candidatos brancos. Nem doadores nem destinatários informaram como o recurso foi gasto.
O UOL acionou Major Vitor Hugo, Juiz Odilon, Fábio Trad, Otávio Trad, Jovair Arantes, Clécio Alves, Vilmar da Silva Rocha e Eli Borges por e-mail, telefone e pelas páginas oficiais dos políticos nas redes sociais. Até a primeira publicação deste texto, eles não retornaram.
Como o fundão eleitoral é distribuído
Em 2017, pessoas jurídicas foram impedidas de doar para campanhas eleitorais. A partir daí, a União virou uma das principais fontes de financiamento de candidaturas. A partir de 2018, o fundão passou a operar. Os critérios são os seguintes:
- 48% serão divididos conforme o número de deputados federais eleitos por cada partido em 2018;
- 35% serão pagos a partidos com pelo menos um representante na Câmara, conforme o total de votos conquistados por cada legenda em 2018;
- 15% serão divididos entre os partidos conforme o número de senadores;
- 2% serão repartidos igualmente entre todos os 32 partidos registrados no TSE.
Dos R$ 4,9 bilhões distribuídos neste ano, União Brasil, PT e MDB receberam ao todo R$ 1,6 bilhão (33%). O Novo foi o único dos 32 partidos que abriu mão do recurso.
Uma vez que o dinheiro pinga na conta, cada legenda é obrigada a distribuir a verba obedecendo segundo as políticas afirmativas. Com isso, destina ao menos 30% para mulheres e verba proporcional a candidatos negros e brancos. A partir daí, cada partido estabelece seus próprios critérios.