Você sabe dizer quantas empresas estatais tem o Brasil? O Acesse Política foi atrás desse levantamento e descobriu que nosso país possui 138 empresas estatais federais. Se contabilizadas as companhias que pertencem aos Estados e municípios, e não apenas à União, o total passa de 400, segundo a Fundação Getulio Vargas (FGV).
O número já foi maior. Na década de 1990, o país privatizou 119 estatais, com a geração de US$ 70,3 bilhões em receita, segundo o coordenador de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV, Armando Castelar.
Os valores, diz ele, fazem da privatização brasileira daquela época uma das maiores em todo o mundo, ao lado de países como México, Austrália e Reino Unido.
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Na conta entram desde a venda de geradoras de energia e de bancos estaduais à concessão de rodovias e à quebra do monopólio público do setor de telecomunicações – incluindo a privatização da Telebras, a maior do período, que levantou R$ 22 bilhões.
Há desde empresas já consideradas eficientes na época, como a mineradora Vale, a estatais que eram bastante deficitárias. “No caso da Embraer e da CSN, era privatizar ou fechar”, ilustra o economista.
Paulo Guedes, o “superministro” da Economia do presidente Jair Bolsonaro, tem sinalizado que pretende retomar o ciclo, que arrefeceu durante os anos de gestão petista, entre 2003 e 2016.
Ele decidiu manter a estrutura do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), montada durante o governo Temer para coordenar as dezenas de privatizações propostas por sua equipe, e criar uma Secretaria-Geral de Desestatizações para dar fôlego ao processo.
O tema divide não apenas a opinião pública, mas também especialistas. Apesar da vitória de Bolsonaro, que defendeu abertamente a venda de estatais em seu programa, pesquisa do Datafolha divulgada em dezembro apontou que 7 em cada 10 brasileiros eram contra privatizações.
Parte dos economistas acredita que faz sentido que existam estatais em setores considerados estratégicos – seja como mecanismo de promoção de desenvolvimento ou de indução da inovação.
Outros, por sua vez, questionam o conceito de “estratégico” e avaliam que o Estado pode promover crescimento econômico sem necessariamente ser dono de empresas, com um bom marco regulatório, boas agências de fiscalização e promovendo a competição.
Mas, afinal, o Brasil tem um número excessivo de estatais? Faz sentido para o Estado se desfazer delas? Privatizar é bom ou ruim para a economia?
A seguir as privatizações em 5 perguntas:
1) A União é dona de mais de 100 empresas – isso é muito?
Em uma lista de 39 países compilada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com dados de 2015, as 134 estatais federais que o Brasil tinha na época colocavam o país em quarto lugar, atrás de Índia (270), Hungria (370) e China (51.341).
Vizinhos como Argentina e Colômbia tinham, respectivamente, 59 e 39 estatais federais e economias desenvolvidas como Alemanha e França, 71 e 51. Estados Unidos e Reino Unido tinham 16 cada uma.
O economista-sênior da OCDE responsável pela área de monitoramento da economia brasileira, Jens Arnold, afirma que o Brasil está no grupo de países em que as estatais têm peso importante – com faturamento total equivalente a cerca de 5% do PIB (Produto Interno Bruto).
Mas ressalta que, quando o assunto são empresas públicas, “não existe um número ótimo”.
“Contanto que elas tenham bom desempenho e boa governança (nenhum número pode ser considerado excessivo)”, afirma o economista alemão.
Levando isso em consideração, contudo, ele avalia que o país tem espaço, de um lado, para melhorar a estrutura de parte das empresas públicas e, de outro, para privatizar.
“A privatização não deveria ser um debate ideológico, mas algo pragmático”, diz.
Em sua visão, o excesso de indicações políticas – que muitas vezes acaba abrindo caminho para a corrupção – e a falta de metas concretas de performance na maioria das estatais brasileiras tornam sua gestão, de forma geral, menos eficiente do que no setor privado.
2) O que aconteceu com as empresas que o Brasil já privatizou?
Um estudo amplo publicado em 2005 por pesquisadores da USP, da Fundação Getulio Vargas e da Universidade Presbiteriana Mackenzie com 102 empresas privatizadas entre 1987 e 2000 concluiu que, grosso modo, elas melhoraram o desempenho desde que passaram a ser geridas pela iniciativa privada.
Com base em 15 indicadores de performance, calculados a partir das informações divulgadas nos relatórios financeiros anuais das empresas, o levantamento assinala especialmente um aumento na lucratividade e na eficiência operacional das companhias, afirma Francisco Anuatti Neto, professor do Departamento de Economia da USP de Ribeirão Preto e um dos autores do trabalho.
Esse é o caso, por exemplo, da Vale, objeto de estudo dos professores do departamento de Economia da PUC-Rio Vinicius Carrasco e João Manoel Pinho de Mello.
Fazendo uma análise dos retornos das American Depositary Receipts (as ADRs, que são recibos de ações emitidos nos EUA para negociar ações de empresas de fora do país na Bolsa de Nova York) da Vale, eles verificaram que elas geraram um retorno nominal em dólar de mais de 3.000% entre 1997, ano da privatização, e 2011.
Os pesquisadores reconhecem que parte do desempenho foi impulsionado pelo aumento da demanda da China por minério de ferro. Ainda assim, quando se comparam os resultados da Vale no período com os de outra empresa do setor de mineração, a australiana Rio Tinto, os da brasileira seguem sendo bastante superiores.
Parte desses ganhos, ressalta Carrasco, voltou para os cofres do governo na forma de impostos, um dos benefícios que ele considera “ignorados” nos processos de privatização.
No caso específico da Vale, ele acrescenta, o governo ainda ganhou com sua participação minoritária na empresa, através do BNDESPar – o braço do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social que administra participações da instituição pública de fomento em outras empresas.
Através do BNDES, o governo ainda detém pouco mais de 7% das ações da mineradora.
Um das críticas feitas à privatização da Vale se personifica no caso da Samarco, que é subsidiária da mineradora, e da cidade mineira de Mariana.
Em 2015, a barragem de Fundão da Samarco, com milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro, se rompeu, destruiu completamente três municípios, deixou milhares de desabrigados e causou o maior desastre ambiental que o país já viu.
Esse seria um reflexo negativo da gestão pela iniciativa privada, mais focada em cortar custos para garantir retorno aos acionistas do que em garantir condições de segurança adequadas em seus empreendimentos.
Para o economista da PUC-Rio, episódios como esse seriam evitados com melhor regulação. “Exigindo-se multas vultosas do culpados, por exemplo, até para mandar um sinal para os outros players (e desestimular condutas negligentes).”
Professor da UFRJ e pesquisador associado da Universidade de Sussex, Caetano Penna ilustra a complexidade da discussão sobre as privatizações com o caso do setor de telecomunicações.
O economista pondera que o serviço melhorou depois que passou a ser prestado pelo setor privado, “mas ele ainda não é exatamente competitivo, e o consumidor brasileiro paga caro quando comparado ao de outros países”.
Um estudo de 2014 da União Internacional de Telecomunicações (UIT), ligada à ONU, mostrava que a telefonia móvel no Brasil era uma das mais caras do mundo, com preço da ligação superior ao praticado em todos os países europeus.
Entre 166 nações avaliadas, em apenas 47 os custos eram inferiores aos do Brasil.
Olhando para os aspectos positivos da quebra do monopólio público do setor de telecomunicações, Armando Castelar, do Ibre-FGV, destaca a universalização da telefonia fixa, possibilitada pelo desenho de um subsídio cruzado no processo de privatização: consumidores de regiões mais ricas pagavam inicialmente mais caro para possibilitar que o serviço chegasse a áreas mais remotas do país.
Esse seria, em sua visão, um exemplo de como o Estado conseguiu assegurar um benefício social por meio do contrato de privatização e do modelo regulatório do setor.
“O Estado não precisa necessariamente ser dono para tomar decisões estratégicas”, afirma.
3) E quando a privatização não funciona?
Entre 2000 e 2017, o mundo viu pelo menos 835 casos de “remunicipalização”, de acordo com o think tank Transnational Institute (TNI), baseado na Holanda.
No levantamento há mais de uma centena de casos de empresas de geração e distribuição de energia na Alemanha e a reestatização de empresas de água e esgoto em mais de dez cidades francesas, como Paris, Marselha e Bordeaux.
Entre os problemas observados durante a gestão privada estavam o não cumprimento de investimentos previstos em contrato, a queda na qualidade do serviço, a falta de transparência e o aumento de preços.
O trabalho se concentrou em seis setores: energia, educação, transporte, saúde e assistência social, gestão de serviços públicos locais e água e saneamento.
Só nessa última área foram mapeados 267 casos – e as histórias, de forma geral, são muito parecidas, diz Satoko Kishimoto, pesquisadora do TNI.
Para cumprir, ainda que parcialmente, os investimentos com os quais haviam se comprometido nos contratos de privatização, as empresas tomaram empréstimos no setor privado – em geral mais caros do que os captados no setor público – e aumentaram progressivamente seu nível de endividamento.
Com o passar do tempo, para arcar com o serviço e ao mesmo tempo garantir o nível de rentabilidade entre 11% e 12%, a média do setor, os prestadores de serviço acabaram elevando as tarifas, o que fez com que o consumidor final pagasse cada vez mais caro.
O roteiro é semelhante ao que aconteceu na cidade de Itu (SP), onde o serviço de saneamento, após dez anos gerido pela iniciativa privada, voltou a ser administrado pela prefeitura em 2017.
O caso do município paulista é um dos 12 que a TNI está verificando para incluir no mapeamento de 2018 das remunicipalizações do setor de água e esgoto.
“O que temos observado é que a tendência se mantém. Essa área é um caso clássico em que a administração privada falhou”, avalia Kishimoto.
4) O que o governo Bolsonaro pretende privatizar?
O saneamento é um dos focos do PPI – e, portanto, uma das áreas em que as privatizações devem ser retomadas.
Também estariam na fila a Eletrobras, cuja privatização foi proposta pelo governo Temer em janeiro de 2018 e segue parada no Congresso, e da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras.
A nova administração ainda não apresentou, contudo, um programa concreto de privatizações.
Mais que isso, os discursos de Bolsonaro e Paulo Guedes sobre o assunto se afastaram no fim da campanha eleitoral do ano passado: o futuro ministro da Economia sempre defendeu uma ampla privatização, enquanto o agora presidente, depois de adotar inicialmente essa posição, afirmou, por exemplo, que uma eventual venda da Petrobras preservaria seu “núcleo” e disse que não colocaria Caixa e Banco do Brasil à venda.
Nesse sentido, especialistas como Caetano Penna, da UFRJ, veem um possível conflito entre a equipe econômica e os ministros e altos funcionários militares de Bolsonaro, vistos como mais nacionalistas.
“A ‘febre privatizante’ vai ser contrabalançada pelos militares, pela tensão interna entre eles e a equipe do Paulo Guedes”, concorda Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobras.
Para ele, um dos focos de estresse vai ser justamente a estatal de energia, já que o ministro de Minas e Energia, o almirante Bento Costa Lima Leite, também vem das Forças Armadas.
“Ele não falou abertamente que é contra a privatização da Eletrobras, mas também não se mostrou a favor”, diz Rosa.
Além de Minas e Energia, a pasta da Defesa também é chefiada por um militar, Fernando Azevedo e Silva. Os militares ocupam ainda o Gabinete de Segurança Institucional, com o general da reserva Augusto Heleno Ribeiro, e a Vice-Presidência, com o general Hamilton Mourão.
Na outra ponta estariam o Secretário-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, que já presidiu o PSL e que estará encarregado de tocar o PPI, e membros do alto escalão como o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, especializado em privatizações, e o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, que defendeu a venda da estatal em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo durante a greve dos caminheiros do ano passado.
5) Afinal, ter estatais ou bom ou ruim para a economia?
Entre as economias desenvolvidas há desde países em que as estatais têm um peso forte, como é o caso da Noruega e de Cingapura, até aqueles em que elas são escassas, como os Estados Unidos.
“Não existe um único modelo de sucesso”, diz a professora da FGV Direito-SP Mariana Pargendler.
Ela e o professor da Universidade de Columbia Curtis J. Milhaupt estudaram aqueles e outros cinco países para avaliar os desafios de gestão de estatais de capital aberto em diferentes regiões – como funcionam as leis às quais elas estão sujeitas, se estão suscetíveis a interferência política e que importância elas têm no contexto geral da economia local.
No caso de Cingapura, a administração do Partido da Ação Popular criou, desde a independência do país da Malásia nos anos 1960, uma série de “empresas ligadas ao governo” (government linked companies, GLC), nas quais tem participação por meio de uma holding, a Temasek.
A holding controla hoje 23 das maiores empresas do país, com valor de mercado correspondente a 40% da capitalização do mercado de ações (ou seja, do valor de mercado das empresas de capital aberto) de Cingapura.
Segundo Pargendler, o desenho regulatório que dá uma orientação comercial às empresas e o fato de que entre o governo em si e as estatais há um intermediário (a Temasek) reduzem a influência política sobre as empresas públicas a um mínimo.
O modelo de Cingapura, destacado por organizações como o Banco Mundial e a OCDE, há anos inspira países como a China.
Na Noruega, ainda segundo o estudo, a estatização ganhou fôlego após a Segunda Guerra Mundial, em um cenário em que o mercado de capitais enfraquecido limitava a capacidade do setor privado de investir.
Uma das maiores empresas do país é a estatal de petróleo, a Statoil, criada em 1972 depois da descoberta de um grande volume de reservas.
Parte da renda arrecadada com a exploração da commodity é encaminhada desde os anos 1990 a um fundo soberano destinado a financiar políticas sociais e a servir de “colchão” para a economia quando o petróleo se esgotar.
A pesquisadora pondera que não faltam exemplos de empresas públicas demasiadamente suscetíveis à influência política ou usadas pelo Estado como vacas leiteiras (“cash cow“, no jargão em inglês) – ou seja, de onde só se tiram recursos até que eles se esgotem.
O setor de óleo e gás, aliás, tem uma série de casos polêmicos nesse sentido – como a petroleira da Colômbia, a Ecopetrol, onde, segundo ela, a influência política interfere negativamente na gestão da empresa, e a própria Petrobras, objeto de um dos maiores escândalos de corrupção do Brasil.
“Mas é uma visão maniqueísta colocar as estatais de um lado (como ineficientes) e as privadas de outro”, ressalva.
Para que as privatizações efetivamente funcionem, diz Castelar, do Ibre-FGV, o Estado precisa desenhar um bom modelo regulatório, estar “bem aparelhado para fiscalizar” e desenhar bons contratos, que condicionem a gestão privada a fazer novos investimentos para que a desestatização também gere eventuais benefícios sociais – no caso específico do saneamento, a universalização do serviço, já que metade dos brasileiros ainda não tem acesso a esgoto tratado.
“É preciso criar métricas para monitorar a qualidade do serviço, ter boas agências reguladoras e competição entre as empresas”, acrescenta Carrasco, da PUC-RJ.
Penna, da UFRJ, pondera que a defesa das privatizações “às vezes se dá sobre argumentos muito teóricos”. “É a ideia de que o Estado é propenso à corrupção e à ineficiência, mas tudo isso tem que ser verificado caso a caso.”
Nesse sentido, ele pontua que, após reestatizada, a empresa de saneamento de Paris voltou a dar lucro e reduziu os preços. Já em Londres, onde o serviço foi privatizado, um estudo da Universidade de Greenwich publicado em 2017 apontava que os contribuintes estavam pagando 2,3 bilhões de libras a mais por ano.
“Privatizar ou não é um falso dilema. A questão é como, é definir o que é estratégico, fazer uma análise de custo-benefício nas empresas públicas e, se elas forem ineficientes, tentar entender o porquê”, diz.