Em 2009, o governo chinês começou a desenvolver um projeto chamado “Sistema de Crédito Social”. Ele entrou no ar, em versão limitada, em 2014 – e ganhou contornos mais amplos, com regras mais duras, a partir de 2019.
Um escore alto facilita a vida para financiar um imóvel, alugar um carro, conseguir melhores empregos ou entrar numa boa universidade. Uma pontuação baixa pode restringir o acesso a serviços públicos e proibir a pessoa de viajar – até junho de 2019, segundo o governo chinês, 26 milhões de passagens aéreas e 6 milhões de passagens de trem foram negadas a pessoas que tinham baixa pontuação (elas possuíam dinheiro para adquirir os bilhetes, mas foram impedidas de comprá-los).
Atualmente, há vários sistemas de crédito social, que são gerenciados por empresas e governos locais da China e adotam critérios diferentes – mas eles deverão ser unificados. “A ideia é que o governo central faça um estudo e pense numa política que se expanda ao resto do país de maneira uniforme”, diz Evandro Carvalho, coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Rio. Em 2018, um estudo online feito por pesquisadores alemães com 2.209 chineses revelou que 80% deles aprovavam os sistemas de crédito social que utilizavam. Detalhe: todos eram sistemas privados, criados por empresas. Entre os mais populares está o Sesame Credit, da gigante varejista Alibaba, que usa algoritmos para determinar quem pode ou não pegar um empréstimo – ao menos essa é a proposta. Mas apenas 11% dos chineses sabiam que o governo também tem seu próprio sistema de pontuação social. Para Carvalho, o conceito de crédito social liderado pelo Estado está mais ligado a aspectos econômicos do que ao cerceamento das liberdades individuais. “A estabilidade é fundamental na vida dos chineses, e o sistema de crédito social tem a ver especialmente com a produtividade”, diz.
Mas observadores internacionais, como a ONG americana Human Rights Watch (HRW), dizem que o crédito social pode ter um lado mais sinistro: o governo chinês, que já monitora fortemente a internet, poderia aumentar ou abaixar a pontuação dos cidadãos conforme os sites que eles acessam, com quem se comunicam e o que postam. Seria uma forma de controlar, implacavelmente, a ideologia da população. “Por enquanto, critérios políticos não estão incluídos no sistema, mas falta pouco para que isso seja feito”, diz Kenneth Roth, diretor da HRW. E a coisa vai além: no futuro será possível utilizar até mesmo sinais biométricos, como a frequência cardíaca e a temperatura corporal, para monitorar as pessoas.
No futuro não. No presente mesmo. O coronavírus acelerou e aprofundou o processo de monitoração. Em diversas cidades da China (e do resto do mundo), a entrada e saída de pessoas em prédios é controlada: fiscais tiram sua temperatura, e você não pode entrar se estiver com febre (que é um sintoma comum da infecção pelo SARS-CoV-2). O acesso a locais públicos, como supermercados, também está sendo regulado, com dados fornecidos por plataformas como WeChat e Alipay. Com mais de 1 bilhão de usuários, esses superaplicativos já faziam parte da rotina dos chineses, porque servem para quase tudo: para pagar compras (substituindo cartões de débito ou crédito), pedir delivery, como rede social e para transferir e receber dinheiro.
Com o surgimento da pandemia, os cidadãos foram obrigados a baixar um novo app, o Alipay Health Code, que mescla dados do seu histórico de saúde e dos lugares onde você esteve para avaliar o seu risco de estar infectado. Ele atribui um QR code, e uma cor, a você – que tem de mostrar o código antes de pegar transporte público, entrar em lojas ou, em alguns casos, até sair do seu apartamento. Se o status for verde, você tem permissão para circular em locais públicos. Amarelo indica contato com indivíduos ou regiões de risco, e limita os lugares onde você pode entrar. Já o vermelho significa que você pode estar contaminado, e deve se isolar imediatamente. Tudo isso tem ajudado a conter a pandemia. Mas também cria uma rotina orwelliana, no melhor estilo Grande Irmão, a figura que representa o totalitarismo absoluto em 1984 – mesmo porque o governo chinês não explicou detalhadamente como o seu sistema calcula a cor atribuída a cada pessoa. E isso abre espaço para arbitrariedades: num futuro pós-pandemia, pessoas com baixa pontuação social poderiam ser punidas com um equivalente à cor vermelha, e ter sua circulação restrita, por qualquer motivo.
A Coreia do Sul, apontada como referência no enfrentamento da pandemia, também está monitorando fortemente seus cidadãos: o governo utiliza SMS para informar onde há pessoas potencialmente infectadas e os locais em que elas estiveram recentemente. Quando um caso positivo é registrado, o paciente precisa responder um questionário dizendo por onde andou e com quem esteve. E não só as pessoas que tiveram contato com ele são avisadas, mas também desconhecidos que possam ter cruzado seu caminho – como o caixa do mercado ou o motorista do aplicativo de transporte. Isso só é possível porque as respostas fornecidas pelos infectados são cruzadas com dados de cartão de crédito, do GPS do celular e, claro, de câmeras de vigilância – também comuns nas ruas coreanas. Isso também tem sido eficaz no combate à pandemia. Mas é um padrão de vigilância inédito, e que não será “desinventado” quando a poeira do vírus baixar.
O fato é que a vigilância está, sim, se espalhando pelo mundo. No dia 10 de abril, Apple e Google anunciaram que estão desenvolvendo um novo sistema de rastreamento para o iOS e o Android.
A Rússia também está na ciranda. Já começou a desenvolver um aplicativo, de uso obrigatório, que usará um QR code para armazenar dados sobre seus cidadãos. Alemanha e Itália estão usando dados fornecidos pelas operadoras de celular, que permitem saber onde cada pessoa esteve. E o governo brasileiro anunciou que adotará um sistema similar, monitorando 220 milhões de celulares. Segundo o SindiTelebrasil, grupo que reúne as operadoras, os dados serão anonimizados e fornecidos com 24 horas de atraso, ou seja, não revelarão a identidade das pessoas nem sua localização em tempo real. A ideia é utilizar as informações para entender melhor como a população, de modo geral, está se deslocando.
Em Israel, o monitoramento de celulares acabou dando margem a medidas mais agressivas. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou o monitoramento da localização dos cidadãos. Em seguida, fechou todos os tribunais do país e passou a governar por decreto. “O coronavírus matou a democracia em Israel”, escreveu o historiador israelense Yuval Noah Harari. Ele está acostumado a lidar com o tema. Em seu livro 21 Lições para o Século 21, lançado em 2018, dedicou um capítulo inteiro ao que chamou de ditaduras digitais. “Nas mãos de um governo benigno, algoritmos de vigilância podem ser a melhor coisa que já aconteceu ao gênero humano. Mas também podem dar poder a um futuro Grande Irmão”, escreve. Para Harari, é muito provável que os palestinos já estejam sendo monitorados pelos israelenses.
Sim. É comum que, em momentos de crise, os países aprovem leis aumentando o poder do Estado. O problema, como dissemos, é que algumas dessas medidas podem se tornar eternas. Foi o que aconteceu nos EUA após o 11 de Setembro, em 2001. À época, o Congresso aprovou a Patriot Act, uma lei que autoriza o governo a espionar qualquer cidadão americano. Originalmente, ela teria validade até 2005 – mas está em vigor, com pequenas alterações, até hoje. E o coronavírus já provocou uma nova pancada do Estado nos direitos civis. Em março, o Departamento de Justiça (DOJ) procurou lideranças do Congresso dos EUA, sugerindo um pacote com ações drásticas. As medidas, que ainda não foram aprovadas, permitem à polícia prender qualquer pessoa por tempo indeterminado, sem direito a julgamento. Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orban obteve poder absoluto: agora, ele pode criar e extinguir leis, sem passar pelo Congresso. O Parlamento britânico aprovou um pacote de leis, com nada menos do que 327 páginas, que aumenta radicalmente o poder policial e jurídico do Estado. As medidas foram apelidadas, pejorativamente, de “poderes de Henrique 8o” – referência a esse rei inglês, que no século 16 governou o país por decreto, seguindo apenas as próprias decisões.
Num artigo escrito em março, Yuval Harari afirma que a Covid-19 pode se revelar um divisor de águas na história da vigilância. Primeiro, por normalizar seu uso em países democráticos, como vimos aqui. Segundo, por representar uma transição dramática da vigilância sobre a pele para uma vigilância sob a pele. O coronavírus vai passar, mas o trauma que ele deixa não; por muito tempo, a sociedade conviverá com o medo de novos vírus. E isso poderá ser usado para adicionar uma nova camada de monitoramento.
No futuro, poderemos ser convencidos a usar uma pulseirinha digital, ou um smartwatch, que medirá nossa temperatura corporal e batimentos cardíacos e enviará essas informações para o governo, que as utilizará para analisar quem está ou não doente. Isso tem um lado muito positivo: ajuda mesmo a conter eventuais epidemias. A maioria das pessoas tenderia a aceitar, ignorando o lado sinistro da coisa – se o governo monitora os seus batimentos cardíacos e a sua navegação na internet, consegue saber quais notícias e textos deixam você tranquilo ou irritado. E a partir daí pode inferir, em certo grau, sobre o que você pensa. Essa capacidade, combinada com os sistemas de pontuação social, daria aos governos um poder realmente orwelliano sobre os cidadãos.
Esse cenário, que hoje soa meio exagerado, pode se tornar tão comum quanto usar máscaras para ir ao supermercado – coisa que ninguém fazia mesmo quando o vírus já tinha começado a circular, e virou norma.
As grandes catástrofes têm o poder de acelerar a história e tornar corriqueiras coisas que antes pareciam inimagináveis. Mas, na era pós-coronavírus, a sociedade não irá mudar apenas “de cima para baixo”. Ela também será transformada em outro plano: como nos relacionamos uns com os outros.
O aperto de mãos é um hábito milenar: os registros mais antigos remontam à Babilônia, atual Iraque, por volta do século 9 a.C.
O aperto de mãos não é tão universal quanto se imagina. E quando a pandemia for superada, talvez seja ainda menos. “Já é assim em outras culturas. O coronavírus tende a reforçar isso”, diz o psicanalista Christian Dunker, professor da USP e autor de A Reinvenção da Intimidade.
Também pode ser que, passada a pandemia, todo mundo volte a apertar as mãos e pronto (foi o que aconteceu após a gripe espanhola de 1918, afinal). Mas a vida não voltará ao normal tão cedo, pois dificilmente alguém sairá do isolamento com a saúde mental intacta. A questão é que o ser humano evoluiu para ser intensamente social, pois isso era (e é) uma questão de sobrevivência. O confinamento é uma surra diária que damos nesse instinto. E a mente não gosta de apanhar todo dia.
No começo de março, cientistas da Universidade de Xangai publicaram o primeiro grande estudo sobre o impacto psicológico do coronavírus. Entrevistaram 52 mil chineses, de 36 províncias e cidades. Nada menos do que 35% apresentaram transtornos psicológicos como ansiedade, depressão, compulsões e fobias (incluindo agorafobia, medo de espaços abertos). É muito acima da média clássica, que fica entre 5% e 10%. Especialistas têm previsto uma explosão nas taxas de doenças psíquicas durante a pandemia. E depois.
Vamos sair dessa bem diferentes do que entramos. Mas não apenas para pior.
Em 2016, o Dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano. Nunca se mentiu tanto, sobre tudo.
A primazia da ciência, por sinal, deverá ser outro eixo do mundo pós-coronavírus. Em condições normais, uma decisão ou política equivocada pode levar décadas até mostrar seu efeito negativo. Agora, não é assim: a conta chega rápido, e pode ser altíssima. “A crise pode representar uma derrota a quem se coloca como antagonista da ciência e das universidades”, diz Ortellado.
Essa mudança poderá reduzir outro elemento central da última década: a polarização ideológica. É o que acredita o psicólogo Peter Coleman, professor da Universidade Columbia e especialista em resolução de conflitos. Ele se baseia em duas premissas. A primeira é histórica: pela primeira vez em cem anos, desde a gripe espanhola, a humanidade tem um inimigo comum – o coronavírus, contra o qual todos são iguais. A outra é estatística: números mostram que eventos graves tendem a unir os povos. Uma análise feita pela Universidade de Michigan, que analisou 850 conflitos políticos ocorridos entre 1816 e 1992, constatou que 75% acabaram após o surgimento de um grande choque. Coleman cita como exemplo a política americana após a Primeira Guerra Mundial (1918), que estabeleceu uma convivência mais pacífica entre democratas e republicanos até 1980.
As eleições vão mudar, até na forma: a médio prazo, têm grande chance de acontecer online. Eleições pela internet exigiriam um período maior de votação, de uma semana ou até um mês: é a única forma de evitar que falta de energia elétrica, congestionamentos na rede (eleições online não são como votação do Big Brother, demandam sistemas parrudos de segurança) ou outros problemas técnicos impeçam as pessoas de participar. Votar sem sair de casa poderia banalizar as eleições e gerar polêmica, já que não há como recontar os votos. A solução pode estar em tecnologias como o Blockchain, um banco de dados praticamente impossível de fraudar. Ele já foi usado para que militares americanos que estavam fora dos EUA votassem nas eleições de 2018. A Estônia, um pequeno país do Leste Europeu, adota o voto online desde 2007. No Brasil, o primeiro passo nessa direção veio do Congresso Nacional, que tem votado remotamente durante a pandemia. Nossos deputados e senadores estão em home office.
Eles mais seis em cada dez brasileiros. Essa é a massa que estava trabalhando de casa em março, de acordo com a empresa de monitoramento Hibou. E muitos continuarão assim. Em 2019, 45% das empresas já permitiam alguma espécie de home office, segundo a Sociedade Brasileira de Teletrabalho. Mas isso era visto como um privilégio. “Agora, passará a ser considerado um modelo de trabalho”, diz Leonardo Berto, da consultoria de RH Robert Half. As empresas irão repensar a necessidade de manter escritórios grandes e caros – o que deve diminuir o trânsito, a poluição e o consumo de energia. Mas o trabalho não será totalmente remoto. Encontros e feiras de negócios terão ainda mais força. “Serão oportunidades para a criação das redes de relacionamento, algo que o mundo virtual não oferece da mesma maneira”, afirma Berto.
Vamos sair da pandemia machucados, mas também evoluídos. E o período de isolamento extremo, paradoxalmente, pode acabar tendo o efeito contrário: reforçar a comunhão social. Foi o que aconteceu na China, primeiro país a conter a crise. Em 4 de abril, primeiro dia sem quarentena, multidões lotaram os parques, pontos turísticos e espaços públicos das cidades. As pessoas estavam desesperadas para sair de casa. Mas também celebrar, numa apoteose coletiva, o único desfecho aceitável: a vitória da humanidade sobre o vírus.