Faltavam apenas dois minutos para que o voo FR 4978 entrasse no espaço aéreo da Lituânia quando ele fez uma curva brusca e mudou de rota, mostram dados do site flightradar24.com.
Era o começo da tarde de domingo (24) conforme a Folha, do que está sendo chamado por políticos, executivos e acadêmicos de “pirataria de Estado”: uma operação da ditadura da Belarus que desviou um avião comercial da Ryanair para sua capital e prendeu um jornalista crítico do regime de Alexandr Lukachenko.
Quando o piloto avisou que o voo estava sendo desviado para Minsk, um passageiro se levantou imediatamente, abriu o bagageiro, pegou suas coisas e começou a transferir parte delas –um laptop, um celula– para sua namorada. Editor do canal informativo Belamova, Roman Protassevich, 26, pressentiu que era a causa do estranho incidente.
“Não façam isso. Eles vão me matar. Sou refugiado”, apelou ele à tripulação, segundo relato de uma passageira ao jornalista Franak Viacorka, amigo de Protassevich. Um comissário respondeu: “Somos obrigados. Não temos escolha, são acordos internacionais da Ryanair”.
A maioria dos passageiros ficou chocada com a mudança de rota, mas foi informada de que havia razões de segurança, disse um passageiro que pediu para não ser identificado.
“Eu vi a reação de Roman [Protassevich]: desde o início ele ficou agitado, como se soubesse o que estava para acontecer”, afirmou o viajante ao canal informativo belarusso Tut.by. “Parecia que, se a janela estivesse aberta, ele teria pulado para fora dela”, disse outro passageiro, Edvinas Dimsa, 37, à agência de notícias AFP.
Quando o Boeing da Ryanair, escoltado por um caça e um helicóptero militares, pousou no solo belarusso, cerca de 50 pessoas, entre militares e policiais, além de carros de bombeiro e cães farejadores esperavam na pista
“Só então disseram que havia suspeitas sobre uma bomba a bordo.” Os viajantes foram desembarcados em grupos de cinco, com sua bagagem, que foi farejada pelos cachorros.
De acordo com passageiros, agentes belarussos entraram no avião e retiraram o blogueiro à força. “Não bateram nele na nossa frente, mas temo pelo seu futuro. Ele estava superassustado. Olhei diretamente em seus olhos, e era muito triste”, disse um viajante à BBC.
Após ser revistado, o jornalista embarcou no ônibus do terminal com outros passageiros. Três minutos depois, um policial veio e disse-lhe para descer do ônibus e mostrar suas malas novamente. Quando Protassevich voltou ao ônibus, já havia três oficiais atrás dele, relata o Tut.by.
Os passageiros foram todos levados a um terminal do aeroporto, passaram pelas máquinas de raio-X e foram levados a uma sala de espera. Nesse momento, segundo relatos, Protassevich oi levado pelos três agentes que o acompanhavam. “Foi a última vez que o vi”, afirmou o viajante entrevistado pelo Tut.by.
Cerca de seis horas depois, às 19h05 (horário local, 13h05 no Brasil), o portão de embarque foi aberto e eles voltaram ao avião. Pousaram no destino original, a capital lituana, às 21h30, mais de oito horas depois do horário previsto inicialmente.
Além de Protassevich e sua namorada, a jornalista russa Sofia Sapega, outras quatro pessoas que embarcaram no avião em Atenas não chegaram a Vilnius, segundo a polícia da Lituânia. Os governos russo e belarusso não confirmam que Sapega tenha sido presa.
Apesar dos relatos de que o blogueiro temia ser executado, veículos independentes da Belarus dizem que a pena capital não é prevista nos três crimes de que ele é acusado: “cometer ações deliberadas destinadas a incitar a inimizade social com base na afiliação profissional” (pena de até 12 anos), “organizar distúrbios de massa” (15 anos) e “organizar ações que violam gravemente a ordem pública” (3 anos).
Como outros jornalistas, porém, Protassevich foi incluído pela KGB na lista de terroristas –uma condenação por terrorismo poderia, teoricamente, levar à pena de morte. “Temo que ele agora seja torturado pela KGB”, afirmou em rede social Viacorka, que além de ex-colega do blogueiro é responsável pela comunicação da líder de oposição Svetlana Tikhanovskaia.
O jornalista atraiu a atenção da ditadura desde que o Nexta, que ele co-fundou e editou, se tornou um dos principais canais de informação na cobertura dos enormes protestos contra Lukachenko, após as eleições presidenciais de agosto de 2020. Com a internet bloqueada pela ditadura, o canal em aplicativo foi ferramenta indispensável para os manifestantes que pediam a renúncia do ditador e novas eleições livres e justas.
Protassevich já havia sido processado em 2017 e, em 2019, sob ameaças, exilou-se na Lituânia. Ele assumiu o canal Belamova quando seu editor foi preso pela ditadura no ano passado. Uma das últimas postagens instava belarussos a protestarem em suas cidades contra a morte do prisioneiro político Vitold Ashurk, no dia 21, numa colônia penal. Segundo o regime, ele teve um infarto.
Nesta segunda, a Belarus negou que tenha sequestrado o voo da Ryanair para prender o jornalista e acusou países europeus de politizar o incidente. “Não há dúvida de que as ações de nossos órgãos competentes estiveram de acordo com as regras internacionais”, afirmou o Ministério das Relações Exteriores. No domingo, o regime afirmou que agiu para proteger os passageiros de uma possível ameaça.
Líderes falam em pirataria de Estado e pedem punições Já o ministro das Relações Exteriores da Irlanda, Simon Coveney, e o principal executivo da Ryanair, Michael O’Leary, chamaram o episódio de “pirataria de Estado”. O’Leary afirmou em entrevistas que a empresa foi instruída pelas autoridades de segurança europeias a não detalhar o incidente até que sejam feitas investigações pela União Europeia e pela Otan (aliança militar que reúne países norte-americanos e europeus).
Os líderes dos 27 membros da UE discutem o assunto nesta segunda (24) em reunião em Bruxelas e devem impor uma quarta rodada de sanções à ditadura belarussa. Cerca de 100 políticos do país, incluindo Lukachenko, já estão sob restrições por causa da repressão aos manifestantes pacíficos.
A Lituânia declarou que abriu duas investigações sobre o episódio –pelo sequestro da aeronave e pelo pouso forçado.
Autoridades de outros países também pediram providências. “Esta ação bizarra de Lukashenko terá sérias implicações”, escreveu Dominic Raab, secretário de Relações Exteriores do Reino Unido.
O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, exigiu a libertação imediata de Protassevich. “Este ato chocante do regime de Lukachenko colocou em risco a vida de mais de 120 passageiros, incluindo cidadãos americanos”, disse em comunicado.
A Otan pediu a abertura de uma “investigação internacional” , e a Organização de Aviação Civil Internacional, agência ligada à ONU, disse que o incidente pode ter violado tratado que protege a soberania do espaço aéreo das nações.
“É terrível. Lukachenko faz coisas piores que [o ditador norte-coreano] Kim Jong-un. É um genocídio agora na Belarus”, afirmou a ativista belarussa Tatiana Sivachenko à BBC.
Deprimidos, ex-manifestantes veem “inverno sem fim” Nas ruas da Belarus, o clima é de desolação, descreve a tradutora Jenny, que não quis dar o sobrenome. “Estamos sem palavras. Há uma escalada de horror infindável, e percebemos que pode não ser ainda o fundo do posso”, disse ela, por videoconferência.
Professora de literatura que foi demitida ao apoiar protestos contra a ditadura, ela diz que a semana passada já havia começado mal: 12 estudantes e 1 professor de quatro universidades diferentes foram levados ao tribunal em processos criminais, supostamente por terem se manifestado contra Lukachenko.
“Poucos dias depois veio a notícia da morte de Vitold Ashurk, depois o fechamento do Tut.by e agora esse episódio com Roman Protassevich. Lá fora o tempo está bonito, a primavera começou, mas vemos que ninguém vai nos ajudar, não há a quem recorrer, há só uma escuridão infinita”, diz.
Segundo a tradutora, com o aumento da repressão a cidadãos comuns, que passaram a ser presos ou multados apenas por levar na carteira um adesivo vermelho e branco, uma das poucas ações que restaram é escrever cartas para os prisioneiros políticos.
O trabalho será longo: eles são mais de 405 nesta segunda, de acordo com a Viasna, organização de direitos humanos.