No início da pandemia do novo coronavírus o termo “imunidade de rebanho” ganhou destaque entre a população e nas discussões políticas, apesar de já ser um conceito bem conhecido entre cientistas.
Essa expressão diz respeito à imunidade coletiva, ou seja, quando já há um número suficiente de pessoas com resposta imunológica a determinada doença, diminuindo sua taxa de contaminação e protegendo grupos que ainda não foram ou não podem ser imunizados.
Com o anúncio nesta semana, pelo Ministério da Saúde, dos detalhes do Plano Nacional de Imunização contra Covid-19, a questão voltou aos holofotes: será que o Brasil alcançará a imunidade de rebanho já em 2021?
Na opinião dos especialistas ouvidos pela CNN, a resposta é não. Isso porque ainda há muitos fatores, sobre a vacinação, que não estão esclarecidos – a própria porcentagem da população que precisa ser vacinada para se garantir a imunidade de rebanho também pode variar.
“Não podemos falar em imunidade de rebanho. Primeiro, porque não temos a eficácia das vacinas que serão utilizadas. A da AstraZenaca pode ser 60% ou 90% e a Coronavac ainda não concluiu seus estudos e não tem resultado”, afirmou a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
“Também não sabemos qual vai ser a velocidade de vacinação, qual cobertura o plano de imunização vai alcançar. E como deve ser uma vacinação em duas doses, qual vai ser a adesão da população”, completou.
A especialista explicou também que a porcentagem mínima da população que precisa ser imunizada para se atingir a imunidade varia dependendo da doença.
“Por exemplo, no caso da vacina contra HPV, estima-se que se 70% da população entre 9 e 12 anos for vacinada, você obtém a imunidade [de rebanho]. Já no caso do Sarampo, mesmo com a vacina tendo 95% de eficácia, é preciso uma cobertura vacinal de 95% para chegar à imunidade”, disse Domingues.
Ela afirma, ainda, que principalmente nesta primeira fase da vacinação – até junho de 2021 – o principal objetivo deve ser diminuir a gravidade dos casos de Covid-19 e a mortalidade nos grupos de risco.
“Hoje, nossa preocupação tem que ser atingir cobertura vacinal para evitar que as pessoas adoeçam”, disse.
O epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), também acredita que é cedo para pensar em imunidade coletiva contra a Covid-19.
“Vai depender do quanto as vacinas da AstraZeneca e a Coronavac vão ter de eficácia”, afirmou, se referindo às duas que considera mais prováveis de serem usadas no país.
“Se a eficácia estiver entre 90% e 95%, como os laboratórios têm falado, imunizar cerca de 70% da população poderia ser suficiente. Se a eficácia for menor, na casa dos 70%, seria preciso vacinar entre 85% e 90% das pessoas [para gerar a imunidade coletiva]”, apontou.
Ele disse ainda ser importante ressaltar que a vacinação contra o novo coronavírus não é uma proteção individual, mas sim coletiva, já que a doença é transmitida de uma pessoa para a outra.
O infectologista Helio Bacha, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), defendeu a mesma tese, de que a vacinação contra a doença deve ter como objetivo gerar proteção coletiva.
“É por isso que se tivermos uma porcentagem baixa que não pode se vacinar, ou mesmo que não queira, eles acabam protegidos pelo fato de uma grande porcentagem ter sido imunizada”, explicou.
É importante lembrar, porém, que essas pessoas não vacinadas continuarão sujeitas a se infectar e também a transmitir o novo coronavírus entre si, ainda que com menor probabilidade e menor incidência.
Lotufo disse também que é preciso observar três fatores importantes para entender como, de fato, se dará a vacinação no país: a forma de vacinação – todas as candidatas são aplicada da mesma forma, intramuscular –, as doses – todas, menos a da Jansen, dependem de duas aplicações – e a cadeia de frio.
Sobre o primeiro ponto, o professor destacou que as aplicações intramusculares dependem do preparo adequado dos enfermeiros para garantir a segurança, e que grande parte dos trabalhadores da saúde está exausta, ou perto da exaustão, depois de quase um ano de enfrentamento da doença.
Uso incorreto do conceito
Tradicionalmente, a imunidade de rebanho é adquirida pela população por meio de campanhas de vacinação.
Os especialistas ouvidos pela CNN indicaram que houve um uso incorreto do conceito – na maior parte dos casos, por políticos ou leigos – depois que algumas pessoas sugeriram que seria possível chegar a este patamar apenas com a transmissão direta da Covid-19 entre as pessoas e a resposta imunológica motivada pela doença.
“Primeiro, que o efeito rebanho é um termo aplicado para estudos de vacinas, eu nunca tinha visto ser usado para as doenças”, afirmou o infectologista Helio Bacha.
“Eu vi agora [na pandemia do novo coronavírus] que as pessoas estavam pensando nessa hipótese, mas nos países onde tentaram fazer ou estimularam coisas parecidas, como no próprio Brasil e nos Estados Unidos, o resultado foi desastroso”, completou.
Lotufo afirmou que a ideia foi sugerida, inicialmente, pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ainda nos primeiros meses da pandemia, mas que, de fato, o conceito nunca foi usado para imunidade gerada por transmissão de doenças.