Há dias que contaram-me a história de um empresário alemão, um homem muito velho, que veio passar uns dias de férias com a família na Ilha de Moçambique, onde vivo.
Este homem comprou um casarão belíssimo, num estilo meio mourisco, meio renascentista, cuja fachada assenta diretamente nas águas do Índico. Uma tarde, depois do almoço, desceu da ampla varanda por umas escadas de pedra e entrou no mar.
Os filhos e netos distraíam-se à mesa, colocada na varanda, contando piadas e casos antigos. Um deles estranhou a imobilidade do velho, que flutuava de costas, com o rosto voltado para a luz do céu. Quando o foram buscar, viram que estava morto. Ninguém o chorou no velório.
— Estamos felizes por ele ter partido assim — explicou um dos filhos. — Nascer e morrer é uma questão de sorte. O pai teve muita sorte.
Ninguém escolhe a forma como irá nascer, onde irá nascer, ou quem serão os seus pais. Também poucos escolhem a forma como morrerão. O livre arbítrio vale apenas entre o primeiro e o último suspiro.
Além disso, está muito mal distribuído. Milhões de pessoas nascem e morrem sem que lhes seja dada a possibilidade de escolher o que quer que seja. Muitas não podem escolher o presidente do país no qual nasceram. Outras não podem sequer escolher que sapatos usarão nesse dia, porque só possuem um par.
Penso nestas pessoas sempre que hesito perante uma pequena escolha: carne ou peixe para o almoço? Calça ou bermuda para passear? Releio Eça de Queirós ou Jorge Luís Borges? Vou correr ou vou nadar?
Na semana em que o mundo recomeçou, após a tomada de posse de Joe Biden, vale a pena realçar a importância das escolhas. Das pequenas, mas sobretudo das grandes.
Em 2017, os norte-americanos escolheram Donald Trump para a presidência do seu país. Obviamente, a maioria desses eleitores é muito melhor do que o sujeito que elegeram, quer em termos éticos e morais, quer intelectuais.
Milhões de boas pessoas, e de pessoas mais ou menos boas, fizeram uma escolha escandalosamente má. A História estranhará não apenas a cumplicidade de todos os que apoiaram Trump, mas também a brandura conformada de muitos dos seus adversários.
O que se passou nos EUA terá de servir de lição para a generalidade dos regimes democráticos. Democracias são sistemas frágeis — como lembrou Biden, no seu discurso de posse. Podem, com alguma facilidade, cair nas mãos de extremistas — ou de burlões.
Em 2017, nos EUA, caiu nas mãos de um burlão. Trump não é nem nunca foi um verdadeiro conservador. É um trapaceiro que fingiu ser político, como antes fingira ser um empresário de sucesso. De resto, uma das grandes vítimas de Trump foi o seu próprio partido e toda a direita clássica.
O Partido Republicano precisará de muito tempo para recuperar a confiança dos americanos, em particular, das gerações mais jovens.
Nós, os que podemos fazer escolhas, deveríamos valorizá-las mais, aprender a usá-las e a lutar por elas. O livre arbítrio, ou seja, a liberdade, não é uma dádiva de Deus, mas uma conquista dos homens.
*José Eduardo Agualusa é jornalista, escritor e editor angolano de ascendência portuguesa e brasileira.