O Tribunal Superior Eleitoral mudou na terça-feira (20) seu entendimento sobre o conceito de campanha eleitoral antecipada. O colegiado chegou à conclusão de que os critérios restritivos usados até o momento para definir a existência do pedido explícito de votos devem dar lugar à análise do conjunto da obra.
A decisão se deu por um placar de 4 votos a 3 e foi provocada por representação do Partido dos Trabalhadores. A legenda acusou o presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, de propaganda eleitoral antecipada por causa de sua participação na Assembleia-Geral das Assembleias de Deus no Brasil, em Cuiabá, em 19 de abril deste ano.
Na ocasião, ele participou de uma motociata, que culminou no evento religioso. Nem o então pré-candidato, nem o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que o apresentou aos fiéis, fizeram uso de qualquer das “palavras mágicas” (termos que caracterizam o pedido de voto) ao discursar para os fiéis.
O autor do voto vencedor no julgamento foi o ministro Ricardo Lewandowski, que considerou que o contexto geral da motociata e do evento, previamente organizados e divulgados, indicaram a clara antecipação de um ato de campanha pelo presidente. Acompanharam essa posição os ministros Benedito Gonçalves, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes.
Com a decisão, o uso das “palavras mágicas” deixou de ser determinante para a constatação de ato antecipado de campanha. Para entender o impacto dessa mudança de entendimento do TSE, a revista eletrônica Consultor Jurídico ouviu especialistas em Direito Eleitoral.
“A lei não é muito precisa nessa questão. A adesão anterior das ‘palavras mágicas’ tentou dar o mínimo de previsibilidade para advogados eleitoralistas e os próprios candidatos saberem o que fazer. Essa decisão que considera o conjunto da obra é completamente subjetiva”, explica o advogado e professor de Direito Eleitoral Daniel Falcão.
O eleitoralista afirmou que a decisão torna muito difícil para os advogados orientarem os seus clientes e criticou o fato de o TSE não conseguir sustentar durante muito tempo a sua jurisprudência.
O uso das “palavras mágicas” foi criticado por ministros que votaram pela mudança. Um dos mais incisivos foi Alexandre de Moraes. “No momento em que o TSE fixou que essas palavras servem para configurar campanha antecipada, todo candidato passou a andar com uma cola feita pelos seus advogados: fale tudo, menos isso. Ninguém mais diz ‘vote em mim’.”
Conjunto da obra
Outro professor e advogado eleitoralista, Renato Ribeiro de Almeida, por sua vez, viu acerto na decisão. “O conjunto do cenário é fundamental para que se perceba a campanha eleitoral. Se nós sairmos da tecnicidade do Direito Eleitoral e perguntarmos às pessoas se atividades como as motociatas podem ser caracterizadas como campanha eleitoral, elas vão dizer que sim.”
O especialista diz que se esse tipo de conduta, típica de Bolsonaro, fosse praticada por um prefeito do interior do Brasil, a situação seria caracterizada como abuso de poder político e o candidato seria cassado e ficaria inelegível por oito anos. “O presidente da República se vale de sua condição, já que sabe que uma possível cassação de seu mandato geraria efervescência muito grande no país, para sistematicamente violar as regras eleitorais.”
Arthur Rollo, também especialista em Direito Eleitoral, segue a mesma linha. “Nesse caso, o TSE considerou o conjunto da obra, mas eu considero também que estão preenchidos os critérios das ‘palavras mágicas’. Dizer que se Deus ajudar e a população ajudar continuará a ser presidente da República pode ser encarado como um pedido direto de voto.”
Ele defende que eventos como as motociatas devem ser classificados como campanha antecipada e diz que a Justiça Eleitoral deve tornar mais rigorosas as punições a quem fere a regra. “O TSE deveria também considerar o porte da campanha. Uma chapa para o posto de presidente não pode ter o mesmo tratamento de uma candidatura para vereador, só que a multa é a mesma. Pagar R$ 5 mil para ter um evento de grande repercussão acaba valendo a pena.”
Critério subjetivo
O advogado Thiago Fernandes Boverio não viu a mudança com bons olhos. Ele é mais um que ressalta o caráter subjetivo do novo entendimento do TSE. “Na prática, por exemplo, poderemos ter cada juiz eleitoral pensando de uma forma diferente e decisões pelos TREs completamente dessintonizadas entre si, o que não ocorreria se atentarmos ao exato comando do que a lei exige. Uns poderão ser punidos e, pelo mesmo fato, outros não”.
Já Isabel Mota, advogada e palestrante especialista em Direito Público e Direito e Processo Eleitoral, não considera que o TSE simplesmente abandonou o critério definido anteriormente das “palavras mágicas”, mas se adaptou ao modo de fazer pré-campanha atualmente. “O TSE não pode ficar restrito a critérios que não se mostrem suficientes aos desafios que cada nova situação apresenta e, portanto, exige da corte um exame acurado que pode fixar em outros elementos a identificação da abusividade da conduta e o seu enquadramento como ilícito.”
Fernando Neisser tem entendimento parecido. “A análise do conjunto da obra sempre foi levada em conta na configuração ou não da propaganda antecipada ilegal. Não me parece possível falar em um giro jurisprudencial nesse caso, pois suas peculiaridades o diferenciam dos episódios tradicionais analisados pela Justiça Eleitoral.”
Por fim, Lígia Vieira de Sá Lopes acredita que a utilização de “palavras mágicas” para determinação de propaganda antecipada traça uma perspectiva prejudicialmente reducionista. “O Judiciário serve para corrigir injustiças e direcionar a sociedade rumo à evolução, e, para atingir essa finalidade, se faz necessária a consideração do cenário como um todo.”
A especialista acredita que a decisão do TSE nada mais fez do que superar um entendimento que não servia mais ao propósito para o qual foi pensado, que é proteger o pleito eleitoral de abusos, ignorando o contexto dos fatos.