O “Complexo de Israel”, agora, une tráfico e milícia. Conforme reportagem do jornal EXTRA foi batizado por criminosos que se dizem evangélicos e proibiram em seus domínios a prática de religiões afro-brasileiras, o conjunto de favelas na Zona Norte do Rio passou a englobar uma comunidade dominada por paramilitares.
Um inquérito da Polícia Civil obtido pelo EXTRA revela que um pacto fechado entre traficantes e milicianos do Quitungo, em Brás de Pina, culminou na união das quadrilhas e na adesão da favela ao “Complexo de Israel”, que já abrangia Vigário Geral, Parada de Lucas e Cidade Alta.
O acordo — que prevê a união das quadrilhas em invasões a favelas dominadas pela maior facção do tráfico do Rio, rival de ambas — foi descoberto pela polícia durante uma investigação sobre um duplo homicídio no Quitungo, em junho passado. Jhonatan Batista Vilas Boas Alves, o Cepacol, e José Mário Alves da Trindade, o Cebolão, foram executados e tiveram seus corpos encontrados no porta-malas de um carro queimado na favela.
A Delegacia de Homicídios (DH) descobriu que as vítimas eram integrantes da milícia que, descontentes com o pacto com o tráfico, romperam com a quadrilha. A investigação terminou nas prisões, no mês passado, de três policiais militares acusados de integrar a cúpula da milícia do Quitungo e de serem os mandantes do crime.
De acordo com o inquérito da DH, um grupo de paramilitares oriundo de uma localidade conhecida como Morro do Dourado, vizinha ao Quitungo — do qual as duas vítimas fazia parte — se recusou a se submeter às regras dos traficantes e a entrar em guerra com a facção rival, que domina os complexos do Alemão e da Penha. As imposições dos traficantes do “Complexo de Israel” vão desde a expulsão de pais e mães de santo da favela até a proibição de que moradores usem roupas brancas — cor usualmente vestida por praticantes do candomblé.
À DH, um parente de um miliciano que atua no Quitungo deu detalhes sobre a aliança dos paramilitares com o tráfico. Segundo o depoimento, o acordo foi costurado a partir de três integrantes do tráfico da Cidade Alta que tinham parentes no Quitungo. Eles “foram autorizados pelos milicianos a visitar seus parentes, dando início às tratativas de união”. Segundo a testemunha, o pacto foi selado em maio passado. No mesmo mês, os descontentes foram expulsos do Quitungo.
PM já era acusado da morte de Cláudia
Os três PMs que tiveram suas prisões decretadas pela Justiça por integrarem a milícia do Quitungo são os sargentos Zaqueu de Jesus Pereira Bueno, lotado no 7º BPM (São Gonçalo), e Gláucio Ferreira Gomes Damião, do 41º BPM (Irajá) e o cabo Carlos André de Oliveira Sodré, também do 7º BPM. Suas identificações foram fornecidas por testemunhas que moram na favela e confirmadas por um policial do batalhão da área, o 16º BPM (Olaria), que auxiliou a investigação e prestou depoimento na DH.
O sargento Zaqueu, apontado no relatório do inquérito como “a maior liderança da milícia no Quitungo, sendo o responsável por coordenar e ordenar os atos praticados na comunidade”, já foi preso por um caso de violência policial que chocou o Rio em março de 2014. Ele é o policial apontado como responsável pelos disparos que mataram Claudia Silva Ferreira, a dona de casa e mãe de oito filhos que, em seguida, seria arrastada por uma viatura da PM por 350 metros em Madureira, na Zona Norte do Rio.
O vídeo que mostra Claudia sendo arrastada pela viatura da PM por 350 metros da Estrada Intendente Magalhães foi revelado pelo jornal EXTRA e levou à prisão do agente e de mais outros cinco PMs à época. Todos os agentes, então lotados no 9º BPM (Rocha Miranda), seriam libertados por decisão da Justiça meses depois. As imagens mostram a mulher pendurada no para-choque do veículo apenas por um pedaço de roupa. Apesar de alertados por pedestres e motoristas, os PMs não pararam.
Até hoje, no entanto, Zaqueu responde pelo crime em liberdade: o processo judicial contra os PMs pelo homicídio e remoção do cadáver de Claudia anda a passos lentos na 3ª Vara Criminal da capital. Somente em março de 2019, cinco anos após o crime, foi realizada a primeira audiência do caso, em que foram ouvidas testemunhas de defesa e acusação.
Também tiveram as prisões decretadas pelo duplo homicídio no Quitungo, dois chefes do tráfico do “Complexo de Israel”: Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, chefe do tráfico da região, e seu braço direito, Moisés Severino da Silva, o Dino, o homem de guerra da facção.
Ligação com o Escritório do Crime
A investigação também revelou um elo da milícia do Quitungo com o Escritório do Crime, quadrilha de matadores de aluguel responsável por diversos homicídios no Rio nos últimos 15 anos. O ex-cabo da PM Anderson de Souza Oliveira, o Mugão, foi identificado no depoimento de uma das testemunhas à DH como o integrante da milícia responsável por controlar o “gatonet” na favela. Mugão atualmente está foragido: ele teve a prisão decretada em junho passado, acusado de ser um dos matadores do Escritório do Crime.
A ligação de Mugão com o Quitungo é antiga: ele foi expulso da PM, em agosto de 2014, sob a acusação de integrar o “Bonde do 556”, uma milícia que tentava se instalar na favela. Na época, Mugão foi denunciado à Corregedoria da PM por seu principal rival na guerra pelo controle da região, o também ex-PM Márcio Gabriel Simão, o Marcinho do Quitungo. Simão apontou Mugão como o responsável pelo atentado que sofrera em março de 2011 na favela. Na ocasião, seu carro foi fuzilado, mas ele conseguiu sobreviver.
Mugão também chegou a responder na Justiça por integrar um grupo de homens que saltou de uma Kombi na frente de um bar e fuzilou o cabo Anderson Luiz Santos, em outubro de 2011. Na ocasião, Marcinho do Quitungo também estava no local e foi ferido. Mugão ficou três anos preso pelo crime, mas nunca foi condenado. No processo sobre a adesão da milícia ao “Complexo de Israel”, Mugão responde pelo crime de organização criminosa.
Menções bíblicas
No “Complexo de Israel”, os traficantes usam símbolos do Estado de Israel, como a bandeira do país e até a Estrela de Davi, para demarcar o seu domínio. Há bandeiras hasteadas nas favelas Vigários Geral e Parada de Lucas e várias Estrelas de Davi desenhadas em muros pelas favelas. Uma teoria prevalente em algumas correntes evangélicas, particularmente as neopentecostais, prega que a criação do Estado de Israel foi o prenúncio da volta de Jesus Cristo.
A obsessão de Peixão, chefe do tráfico das favelas, pela fé judaica já foi testemunhada durante uma operação da Polícia Civil em Parada de Lucas. Num esconderijo subterrâneo usado pelo traficante para se esconder durante incursões policiais, agentes encontraram — além de munição para uma metralhadora antiaérea e coletes balísticos — um exemplar de luxo da Torá, o livro sagrado do judaísmo.
Segundo a Polícia Civil, Peixão gosta de ser chamado, por seus comparsas, de Arão — referência ao irmão de Moisés, personagem bíblico.