Um novo dialeto pode ser ouvido no Governo de São Paulo desde o início do ano, misturando português, inglês e a linguagem típica da Faria Lima: o “tarcisês”, diz Fábio Zanini, da Folha de S. Paulo.
Em eventos, pronunciamentos e entrevistas coletivas, sobretudo naqueles em que os temas são investimentos privados e obras de infraestrutura, ele impregna a fala do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Eleito com o marketing de ser um técnico, e na esteira da gestão à frente do Ministério da Infraestrutura do governo de Jair Bolsonaro (PL), Tarcísio não se furta a usar jargões do mercado financeiro muitas vezes incompreensíveis para o público leigo.
No leilão do trecho norte do Rodoanel, em 14 de março, em que um vídeo seu dando possantes marretadas viralizou, ele comemorou o fato de ser uma obra com R$ 4 bilhões de investimento. “Se somar capex e opex, mais do que isso”, acrescentou.
Ele se referia às siglas para “capital expenditure” (despesas de capital, que incluem investimentos em máquinas e investimentos) e “operational expenditure” (despesas operacionais), parte do vocabulário das consultorias especializadas.
Em 10 de abril, no evento que marcou os primeiros cem dias de governo, diante de todo o secretariado reunido e da imprensa, o governador usou o tarcisês para explicar por que a privatização da Sabesp poderá ser vantajosa.
Ela geraria um “upside” benéfico para o cidadão. “E esse upside pode ser revertido integralmente em redução da tarifa”, explicou, usando uma expressão do mercado financeiro que mostra quando uma ação tem alto potencial de valorização.
Uma quinzena depois, em 25 de abril, voltou à carga na inauguração de uma planta para veículos elétricos em Iracemápolis, na região de Campinas.
Após dizer que a fábrica terá condições de produzir numa primeira etapa 100 mil veículos por ano, evitou a língua portuguesa para falar sobre a expansão futura do local. “A gente tem uma outra tranche de investimento, de R$ 6 bilhões até 2031”, disse, usando um termo que significa lote, parcela.
Mesmo áreas mais distantes do mundo financeiro são afetadas pelo dialeto. Localizado no bairro paulistano do Bom Retiro para tratar dependentes químicos, o antigo Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas) foi repaginado e rebatizado como “Hub”.
A palavra inglesa, que significa centro, ou confluência, é uma das preferidas do governador, usada em diversos contextos. “A Secretaria de Parcerias e Investimentos tem que funcionar como um hub, é a porta de entrada para os investidores”, disse, no evento dos cem dias.
Para o cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV, a linguagem usada pelo governador é compatível com sua origem fora da política e a maneira como montou a administração.
“Tem muito consultor dentro do governo e na órbita do Tarcísio. O uso dessas expressões é uma maneira de dar um verniz acadêmico a conclusões técnicas, e é uma decorrência da americanização dos cursos de business no Brasil nos últimos anos”, afirma.
De fato, Tarcísio vem adotando como uma marca de sua gestão recorrer a consultorias para estudar a viabilidade de grandes projetos, como a privatização da Sabesp, a reestruturação do Metrô e a transferência da sede do governo para o centro de São Paulo.
Teixeira não vê uma tentativa forçada do governador de parecer técnico artificialmente. “Isso está na origem dele mesmo, ele passou por diversas áreas operacionais ao longo de sua carreira, seja no Exército, seja em órgãos como o Dnit [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes]”.
Ao mesmo tempo, diz o estudioso, realçar o lado “faria limer” ajuda Tarcísio a se distanciar do linguajar bolsonarista, algo que para ele será estratégico futuramente.
O tarcisês não se resume ao uso desenfreado de anglicismos. Também palavras na língua portuguesa ganham outro significado no discurso do atual ocupante do Palácio dos Bandeirantes.
Ele já disse, por exemplo, que uma obra inacabada não gera “taxa de retorno” para o cidadão. Já uma que esteja em andamento proporciona “externalidades positivas” (efeitos na economia). Serviços mais eficientes em áreas como saúde e educação resultam em “compressão de filas”. E é preciso sempre buscar “positivar resultados”.
Líder do PT na Assembleia Legislativa, o deputado estadual Paulo Fiorilo vê o vocabulário como expressão de um governo mais preocupado com o marketing e o mercado financeiro que com o cidadão.
“Isso me parece uma forma de diálogo que tenta enganar a população ao dizer que ele não é um bolsonarista raiz. Quer mostrar que está entregando resultados, mas, se espremer, não sai nada”, afirma.
Com décadas de experiência lidando com políticos de diferentes estilos, o secretário estadual de Governo, Gilberto Kassab, diz que Tarcísio consegue somar habilidade técnica e didática.
“Ele tem uma capacidade muito grande de comunicação. Quando usa um termo, explica o que é. Não vejo dificuldade em ele manter esse estilo, e a maior prova disso são os bons índices de aprovação de sua gestão”, afirma.
Para o professor Teixeira, da FGV, o estilo do governador foi útil para elegê-lo no ano passado, mas é mais duvidoso que seja suficiente para ele tentar voos mais altos, como a Presidência. “Talvez seja necessária alguma adaptação”, afirma.
Ou, traduzindo para o tarcisês, calibrar o discurso pode ser ser um bom “target” (objetivo) caso o governador queira ser um “player” (protagonista) para a disputa ao Planalto em 2026.
PEQUENO DICIONÁRIO TARCISÊS/PORTUGUÊS
- Capex/opex: despesas de capital e operacional em um investimento
- Compressão de filas: reduzir/acabar com as filas
- Externalidade positiva: efeitos de uma obra na economia
- Hub: centro, confluência, porta de entrada, ponto de encontro
- Player: ator, protagonista, participante de uma licitação
- Positivar resultado: gerar benefício, receita
- Target: meta, objetivo, prazo
- Taxa de retorno: benefícios para o cidadão
- Tranche: lote, parcela
- Upside: termo que mostra potencial de valorização de uma ação