Segundo reportagem publicada no jornal A Tarde, o isolamento social é uma expressão que a catadora de material reciclável Telma Batista, 46, só conhece de tanto ouvir falar na televisão nas últimas semanas. Na prática, nunca experimentou. E nem vai poder agora, mesmo com a proliferação dos casos de coronavírus pelo Brasil. Na sua casa, que fica no final de um beco da Rua Boa Vista, no bairro do Uruguai, em Salvador, vivem ela, o irmão mais velho e outras sete crianças da comunidade. Todos dividem o mesmo cômodo, o único da moradia, que funciona como sala, cozinha, banheiro e quarto. São nove pessoas para duas camas, uma de casal e outra de solteiro.
Assim como Telma, outros 633 mil baianos vivem em casas nas quais precisam dividir o lugar onde dormem com quatro ou mais pessoas. Em Salvador, 123 mil pessoas conhecem a mesma realidade. Os dados são de 2018, da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Os números mostram que 4,3% da população, tanto soteropolitana quanto baiana, dificilmente terão como atender os apelos e recomendações das autoridades de saúde pelo isolamento social, considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma das formas mais eficazes de se frear a contaminação pelo Covid-19.
Mesmo com essas condições, Telma diz não ter medo do coronavírus. Mas sabe que a doença, ao contrário do que muitos dizem, não é tão democrática assim e pode ser ainda mais nociva para quem está na pobreza.
“Não tenho medo do coronavírus, pois o medo atrai coisa ruim. No entanto, se alguém pegar a doença, é cada um por si. Se for para adoecer, vamos adoecer. Se for para morrer, assim será. Sempre morre mais gente do lado de cá, do lado da pobreza”, desabafa Telma.
A 450 metros dali, a doméstica Patrícia Ferreira, 36, tem mais motivos para se preocupar com as condições precárias do lugar onde mora, uma laje erguida em cima de uma pequena casa de fachada verde. Um de seus seis filhos, o pequeno Andrei, de 7 anos, possui problemas respiratórios, grupo de risco da doença.
“Fico sempre preocupada. Eles são tudo para mim, tudo que tenho nessa vida. Me sinto desamparada, sem saber o que fazer”, diz Patrícia, preocupada com o fato de precisar dividir um quarto com todos os filhos, o que os submete ainda mais a uma possível contaminação.
Enquanto o tão falado “fique em casa” é luxo para muita gente que precisa continuar saindo dela para trabalhar e manter as necessidades básicas, no caso de Patrícia, a situação é mais delicada porque até o local em que ela vive não ajuda. A construção tem no teto as famosas “telhas de Ethernit”, que fazem com que o calor lá dentro beire o insuportável.
“Não consigo manter os meninos aqui dentro, não o tempo todo. O calor é insuportável. Para tentar reduzir o risco de algum contágio, ao invés de tomar um ventinho na rua, peço para que fiquem no portão da casa debaixo, onde bate um pouco de vento”, conta, entre uma limpeza e outra no rosto, feita com um pano para tirar o excesso de suor.
Especialistas
Para o urbanista e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Nivaldo Andrade, a pandemia trouxe à tona uma questão que “não podemos mais deixar de encarar”. De acordo com ele, Salvador tem entre 60% e 70% da população vivendo em ocupações informais, construídas de forma que favorecem a contaminação pelo coronavírus.
“Num momento desses, o coronavírus vai se espalhar mais rapidamente quando se chegar a essas áreas de ocupação informal. O problema não é o adensamento, mas a forma como ele ocorre nessas áreas. As casas são construídas sem auxílio de profissional qualificado. Não tem ventilação, aeração [renovação do ar], não tem água encanada. Quando tem, a mesma torneira serve pra lavar roupa, pra fazer comida”, explica.
A epidemiologista Emanuelle Góes, pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Ufba e do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz, lembra que todas as grandes epidemias atingiram mais as pessoas em situação de vulnerabilidade econômico-social. Isso tanto com as mais recentes, como dengue e zika, quanto com a varíola e a Gripe Espanhola, no início do século XX. Com a pandemia de Covid-19, não deve ser diferente. Em Salvador, cresce o número de bairros mais pobres com casos do novo coronavírus.
Ela defende que a pandemia tem “marcadores sociais” e que um grupo específico será mais castigado pela doença. “Todo mundo pode ter o vírus. Mas quem vai estar mais exposto ao adoecimento, quando você vê a raça, o gênero, as condições de vida, a qualidade de vida dos contaminados, isso vai, de forma mais agravante, mais agudizada, afetar homens negros e mulheres negras”, analisa.
Ainda segundo a epidemiologista, só políticas públicas poderão amenizar os efeitos da doença para pessoas pobres. Uma medida elogiada por Emanuelle é a criação do chamado “coronavoucher”, aprovado em votação nesta segunda, 30, pelo Senado, que vai fornecer auxílio de R$ 600 mensais a trabalhadores informais e intermitentes durante a pandemia.
Higienização
Além da dificuldade de isolamento, algo que também preocupa pessoas como Telma e Patrícia é a higienização. Com renda baixa, a primeira vive de R$ 89 que recebe do Bolsa Família e do que arrecada com os materiais que recicla, enquanto a segunda teve o benefício cortado e lhe resta apenas R$ 300 de auxílio-moradia. Não sobra dinheiro para investir em produtos como álcool em gel e máscaras.
Para baratear os custos com esses cuidados, o infectologista Robson Reis, do Hospital Aliança, dá algumas dicas. De acordo com ele, o álcool em gel pode ser trocado por água e sabão na higienização das mãos. Já o álcool líquido 70, indicado na lavagem de superfícies, pode ser substituído por uma solução de água sanitária – 2 colheres de sopa do produto para cada litro de água. “É importante aumentar a frequência de higienização de toda a casa. Caso você tenha alguém infectado em casa, se não tiver um banheiro separado para ela, lembrar de higienizar todo o banheiro quando a pessoa usar. E, se puder, tentar manter distância de 1,5 metro da pessoa”, lembra.
Bairros com mais risco de contaminação
Bairros mais pobres de Salvador têm maior risco de proliferação do coronavírus. A conclusão é de uma nota técnica produzida por pesquisadores do grupo GeoCombate Covid-19, coordenado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), divulgada ontem. Segundo o documento, oito localidades da capital baiana precisam de atenção prioritária do poder público porque reúnem fatos considerados críticos para a transmissão do vírus.