Assim como diversos tribunais pelo país, o Supremo Tribunal Federal (STF) está tentando desenvolver uma tecnologia de IA (Inteligência Artificial) para agilizar a análise de processos e desafogar seu acervo.
A corte vai selecionar uma tecnologia de IA para a criação de resumos de alguns de seus recursos, em iniciativa que se soma a outros softwares já em uso em outros tribunais.
O Supremo recebeu, no final do ano passado, 24 protótipos de empresas de tecnologia. A ideia é o desenvolvimento de ferramentas de IA generativa capazes de resumir dois tipos de processos que chegam à corte —os recursos extraordinários e seus agravos.
A IA generativa é definida pela capacidade de criar conteúdos, como textos e imagens, a partir de um “aprendizado” com dados que lhe são fornecidos.
“O STF forneceu aos participantes um conjunto de dados, com peças processuais —todas públicas— necessárias para a elaboração dos projetos de IA”, disse à Folha, por email, o presidente da corte, ministro Luís Roberto Barroso.
“Vou analisar todos esses protótipos para que possamos definir o melhor caminho a seguir.”
O ministro também citou interesse na criação de ferramentas que reúnam imagens, áudios e vídeos, com dados jurídicos, para auxiliarem na produção de minutas de decisão, e a possibilidade de desenvolvimento de uma interface única para os diferentes sistemas adotados nos tribunais.
Antes mesmo de o Supremo anunciar a nova seleção, a corte já havia implementado sistemas que designa como IAs. Disponível desde 2017, o “Victor” é usado na análise de recursos para a identificação de temas de repercussão geral.
A corte também usa os sistemas VictorIA (implementado no ano passado) para identificar processos sobre o mesmo assunto e agrupá-los automaticamente, e RAFA 2030, que apoia a classificação de ações de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
A tendência de robotização —com softwares classificados como IAs, ou outros, mais simples, de automatização—, não está restrita ao Supremo.
Ainda nas alçadas superiores do Judiciário, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) emprega o Athos, desenvolvido internamente no tribunal em 2018. Esse sistema é usado “em vários projetos internos para agrupar processos, para procurar um outro processo por jurisprudência, por similaridade”, explica Daniel Miranda, assessor-chefe da assessoria de inteligência artificial do STJ.
O STJ já firmou com 39 tribunais acordos de repasse do Athos —para que as cortes criem suas próprias soluções tecnológicas com base nele.
Nas instâncias abaixo ainda outras iniciativas se somam: um painel organizado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2022 listou 53 tribunais com alguma iniciativa de IA, em diversos estágios de desenvolvimento; uma nova edição desse painel, em elaboração pelo Conselho, deve apontar um aumento no uso dessas tecnologias, totalizando 140 projetos e 61 tribunais.
O órgão mantém a Sinapses, espécie de repositório dos modelos e dados usados nas IAs pelos tribunais brasileiros. A plataforma faz um controle das versões usadas nas cortes e funciona como meio de contato entre os sistemas digitais.
Nem tudo, entretanto, cai no conceito de IA —alguns softwares em uso nos tribunais fazem automações simples. Os únicos dois projetos de IA creditados ao TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) no painel do CNJ de 2022, por exemplo, ainda não são considerados como tal pelo próprio tribunal.
“O que nós temos é essa parte de robotização muito presente, de softwares que conseguem nos ajudar a melhorar o andamento do processo”, diz Paula Navarro, juíza assessora da presidência do tribunal.
Os dois projetos do tribunal no painel de 2022 estão em desenvolvimento conjunto com a USP (Universidade de São Paulo). Um deles trata de leitura e classificação de petições; o outro, de análise de duplicidade de guias de pagamento.
Os avanços na automatização dos tribunais têm um aspecto positivo frente ao aumento de demanda do Judiciário, avalia Rivana Ricarte, presidente da Anadep (Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos).
A defensora, entretanto, salientou a necessidade de “manter o olhar humano com a inteligência artificial” —posição semelhante à dos representantes da advocacia ouvidos pela Folha, que expõem receios sobre os alcances dessas novas tecnologias.
De acordo com Rafael Leite Paulo, juiz auxiliar da presidência do CNJ, as iniciativas de IA em uso ou desenvolvimento no Judiciário brasileiro não vão sugerir decisões aos juízes. Mas esses sistemas servem para tratar em massa das informações.
“Precisei avaliar um conjunto de processo, eu uso a inteligência artificial para já identificar. ‘Olha, entre esses 100, 200 processos que você tem pendentes, esses 50 aqui tratam sobre o mesmo tema; esses outros 20 aqui têm exatamente esse documento pendente’”, exemplifica.
O desenvolvimento dos sistemas de IA “tem um impacto positivo muito grande, inclusive no que diz respeito à agilidade dos processos”, diz Paulo Brincas, coordenador nacional de Inovação e Tecnologia do Conselho Federal da OAB.
Mas o advogado cita uma preocupação com a falta de transparência na construção desses sistemas, e com a pouca participação da advocacia nesse processo.
“Acredito que, muito em breve, esses sistemas de inteligência artificial vão substituir os sistemas de administração que a gente tem hoje”, continua Brincas.
Seu receio é que aconteça com a IA o que se passou com os softwares administrativos no Judiciário: uma profusão de programas sem centralização, espécie de “torre de Babel”.
Solano de Camargo, presidente da Comissão de Privacidade, Proteção de Dados e Inteligência Artificial da OAB-SP, salienta que muitas soluções semelhantes ao que se vê nos tribunais estão sendo implementadas pela própria advocacia, num cenário em que essas tecnologias estão ficando mais acessíveis.
Até agora, de acordo com o advogado, não houve uma intenção de substituir o juiz em tomadas de decisões —mas, se isso vier a acontecer, seria uma violação ética. “Nós temos o direito de ser julgados por seres humanos e convencer o juiz de que ele pode ter uma opinião superada.”