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quinta-feira 11 de janeiro de 2024 às 16:45h

Sonho da energia verde vira pesadelo para alguns na Caatinga

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Parques eólicos e solares colocam o Brasil entre os líderes globais dessas fontes renováveis, mas levam também transtorno a moradores e desmatamento. A DW foi ao Seridó checar esses conflitos. Olhando para a escuridão pela janela da pequena casa, uma moradora do sertão do Rio Grande do Norte lamenta o ruído de uma turbina eólica que atrapalha seu sono. “As noites são os piores momentos, porque o vento fica mais forte e, junto, o ruído; há dias que ela estala, acordamos sobressaltados com medo de que aconteça alguma coisa”, conta à DW Maria do Socorro, que tem 34 anos e é agricultora.

Ela diz que o sono de verdade ocorre de forma alternada a cada noite: em uma acordando constantemente, a na outra entregue à exaustão pela noite anterior. “Passei muitos anos tomando remédios para dormir, mas parei porque é muito forte, sofria com tontura, ânsia de vômito, mal-estar; restou só a angústia”, diz. Ela move um processo contra a empresa responsável pela turbina para que pague uma indenização suficiente para que possa se mudar dali. “Se pudesse, já havia saído há muito tempo.”

Aproveitar cada vez mais a energia dos ventos e do sol é um dos principais caminhos para superar os combustíveis fósseis e limitar o aquecimento global. Com uma expansão exponencial da participação de fontes renováveis na matriz elétrica nos últimos anos, o Brasil está bem posicionado nessa corrida: em 2022, passou a ocupar a sexta posição entre os países do mundo com maior capacidade de gerar energia eólica onshore (em terra), segundo relatório do Global Wind Energy Council, associação internacional de comércio para a indústria eólica com sede em Bruxelas.

O país também ocupa a oitava posição no ranking dos maiores produtores de energia solar do mundo, de acordo com a Agência Internacional de Energias Renováveis (Irena).

Em novembro de 2023 e antes da Conferência do Clima em Dubai, a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei para criar um novo marco legal para usinas eólicas offshore em plataformas em alto-mar ao longo da costa do país.

Falta de regulamentação

O Nordeste, com ventos fartos e ampla incidência solar, é a região mais atrativa para a construção desses parques de energias renováveis, que beneficiam também a indústria e a geração de empregos.

Mas, para muitos moradores da Caatinga, o sonho da energia verde virou um pesadelo, devido à permissividade das normas que regulam o tema e a falta de assessoria jurídica adequada aos que arrendaram suas terras.

O Brasil não possui hoje uma norma que estabeleça uma distância mínima entre um aerogerador e residências. Uma resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), de 2014, apenas determina que parques com turbinas instaladas a menos de 400 metros de residências incluam em seu estudo de impacto ambiental o índice de ruído “visando o conforto acústico e a preservação da saúde da comunidade”.

Maria do Socorro mora na zona rural da Serra de Santana. A DW a visitou na noite de uma sexta-feira e constatou o alto ruído de uma turbina de geração eólica instalada a 107 metros de sua casa, que há sete anos gira e tira o sono de sua família.

Sua sogra, Maria José Fernandes, de 87 anos, já não tem a mesma mobilidade da nora e passa boa parte do dia ouvindo o girar das hélices de cerca de 75 metros. Segundo ela, nenhuma empresa os consultou sobre a instalação da turbina no terreno vizinho. Repentinamente, começou a surgir uma torre colada ao terreno de 2,5 hectares onde ela mora desde 1971. “Quando começou a funcionar, até chorei”, lamenta a aposentada.

A presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeolica), Elbia Gannoum, reconhece à DW que situações como essa são inadequadas. A entidade considera que qualquer distância menor que 200 metros não atende parâmetros mínimos de bem-estar dos moradores locais, e afirma que um de seus objetivos prioritários é reparar empreendimentos que estejam em desacordo com esse parâmetro, mesmo que tenham sido construídos dentro da lei.

Liderança do Nordeste

O Nordeste responde por mais de 80% da energia eólica e solar produzida no país, e tem possibilidades para ampliar a geração e os ganhos com essa eletricidade na próxima década.

Há diversos projetos em andamento na região para a construção de usinas de hidrogênio verde, que deverá ser exportado via portos como Suape (PE) e Pecém (CE). O hidrogênio verde é produzido a partir de fontes renováveis de energia, e considerado uma matriz essencial para a transição energética em muitas regiões, como a União Europeia (UE).

Na Alemanha, por exemplo, o hidrogênio verde desempenha papel central na transição energética até 2045, quando o país quer ter emissão zero de gases de efeito estufa. Mas, como Berlim precisa importar a maior parte do hidrogênio verde, o Brasil está entre os que cobrirão até 70% da demanda, ao lado de países africanos.

A construção e operação de parques eólicos também tem reflexos no desenvolvimento industrial. O Brasil possui seis fábricas de aerogeradores, que têm 80% de seus componentes fabricados no país, segundo a Abeeolica. No caso das usinas fotovoltaicas, a proporção de componentes nacionais é a inversa.

Em relação ao mercado de trabalho, o setor de energia eólica gera 68 mil empregos no Brasil e o solar, 241 mil, segundo estimativa da Irena.

Benefícios limitados

A região de Serra de Santana, lar de Maria do Socorro, tem um papel importante nesse contexto. Os ventos fortes e constantes sobre o platô elevado da serra, que se espalha sobre sete municípios, tornam a região atrativa para a instalação de aerogeradores. De 2016 a 2023, 20 parques eólicos entraram em operação na região, com uma potência total de 497 MW. Segundo cálculos da DW, se operasse continuamente com 100% de aproveitamento, esse complexo conseguiria abastecer uma cidade de 1,7 milhão de pessoas durante um ano.

Esse boom trouxe investimentos para a região, carente de fontes de renda desde o colapso da indústria de algodão por causa do bicudo-do-algodoeiro, praga que se alastrou ao longo dos anos 80.

O PIB anual de Bodó, menor cidade da Serra de Santana, saltou de R$ 41,3 milhões em 2016 para R$ 300,4 milhões em 2018, após o início das operações de nove parques eólicos no município. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o PIB per capita de 2021 foi de R$ 132 mil, o segundo maior do estado e três vezes maior que o indicador nacional. No entanto, a remuneração média dos trabalhadores formais do município naquele ano foi de R$ 2,1 mil, e mais de dois terços da cidade pertence às classes D e E.

Para a geógrafa Mariana Traldi, professora do Instituto Federal de São Paulo, as empresas geradoras de energia se beneficiam da região onde se instalam muito mais do que a população e o poder público local. Diferentemente da água, que é considerada um bem do Estado por legislação específica, os ventos estão em um limbo regulatório, diz.

Há uma década, ela vem analisando os impactos da implantação de usinas eólicas no semiárido brasileiro. Ela avalia que o aumento de arrecadação de impostos se concentra nas etapas de construção dos parques, e caem quando já estão em operação, e que os contratos de arrendamento são abusivos para os donos das terras.

As empresas geradoras usam normas do direito agrário para fazer negócios, criadas na década de 60 para regular o uso da terra, quando os parques eólicos não existiam. Em sua tese de doutorado, Traldi argumenta que o Código Civil brasileiro abre uma brecha para o potencial energético dos ventos seja considerado como pertencente à terra.

Arrendamentos e arrependimentos

Trata-se de um problema simbólico na Serra de Santana, onde estima-se que vivam 60 mil pequenos produtores rurais, a maioria envolvida no cultivo de caju, feijão, mandioca e mamão nas terras mais frias, úmidas e produtivas que boa parte da Caatinga.

“Por aqui estamos todos arrependidos; eles chegaram com um intermediário muito habilidoso, prometendo muitos ganhos e receita, e por aqui todo mundo inocente, não sabia de nada, foi aceitando”, relata um produtor de caju que prefere não ser identificado.

Seu contrato, muito semelhante a outros de arrendamento para empreendimentos eólicos, é válido por 35 anos, com renovação automática por outros 25. “A verdade é que deixamos um legado bem complicado para os nossos filhos, porque nós mesmos não vamos ver o fim disso”, lamenta o agricultor, que recebe por contrato R$ 12 mensais por hectare.

As outras cláusulas preveem que qualquer embaraço fiscal ou tributário é de responsabilidade do proprietário, que deve deixar o terreno pronto para a instalação dos equipamentos do empreendimento, e que somente quando o parque inteiro estiver operando ele receberá 1,8% do valor da energia vendida.

O maior arrependimento, no entanto, é em relação às dezenas de árvores frutíferas que estavam em total produção, e cuja indenização por sua extração varia entre uma muda nova ou R$ 250 por árvore. Ele estima que, em valores atuais, as árvores derrubadas gerariam uma renda anual de aproximadamente R$ 24 mil. Segundo ele, os responsáveis ofereceram R$ 30 mil como compensação, o que teria sido aceito por medo de um processo judicial. Ao final dos 60 anos, seriam R$ 1,4 milhão em frutas que deixaram de ser produzidas em meio às usinas.

Poeira vermelha

Maria do Socorro, no entanto, não recebeu um centavo ao longo dos sete anos, pois não é arrendatária, e arca somente com o ônus da geração de energia limpa. Como os moradores ao longo da estrada estadual que percorre a serra de uma ponta a outra, e que vêm sofrendo com o aumento de doenças respiratórias causadas pelo pó que o trânsito constante de veículos pesados provoca.

Iranete da Silva desistiu da espaçosa casa onde morava com a família, assim como a filha, que tem uma outra casa igualmente grande no mesmo terreno. Sempre que possível, elas se refugiam em um pequeno imóvel a alguns quilômetros da estrada de terra, enquanto a casa onde viviam há 30 anos permanece totalmente fechada, e as camas, cobertas com proteções plásticas.

“Ainda assim, essa poeira vermelha entra e gruda em tudo, pinta as paredes… é como se tivesse um óleo que nada tira”, reclama a comerciante. “Quando havia apenas poeira clara era melhor, mas de um ano para cá trouxeram essa terra vermelha e neste meio tempo minha irmã já adoeceu, os sobrinhos desenvolveram asma, e tudo por conta desse tráfego pesado”.

Um médico local, que também prefere não ser identificado, relata um aumento nos casos de doenças crônicas como silicose. Segundo ele, o barro aderido às paredes das residências é uma fotografia do que ocorre nos pulmões das donas destas casas. “Infelizmente não há estudo desse impacto, tampouco estatística para comparar o antes e o depois. Fica tudo na observação de quem se preocupa em olhar o que está acontecendo”, diz.

Com o crescimento dos projetos de novos parques em todo a Caatinga, a tendência é o aumento desses impactos sobre a saúde da população local. Somente na Serra de Santana são cinco novos parques em construção e próximos do início das operações.

Em todo o Rio Grande do Norte, as empresas do setor já controlam pelo menos 262 mil hectares, o que representa 5% da área do estado, segundo levantamento da ONG Repórter Brasil. Metade dessa área está nas mãos de 27 empresas brasileiras. Ao todo, os parques em operação, em construção ou já previstos têm contratos com pelo menos 1.915 imóveis rurais em 51 municípios.

Legislação permissiva

Gannoum, da Abeeolica, avalia como positiva a falta de uma norma específica que defina uma distância mínima entre os aerogeradores e as residências.

“Se ela dissesse uma distância mínima a ser seguida pelos estados, muitas vezes essa distância não seria suficiente para atender certas comunidades”, afirma. “Mesmo o ruído não pode ser absoluto. Uma comunidade em uma cidade já está acostumada a níveis de ruído muito maiores que uma mais isolada.”

O parque eólico de Macambira, vizinho e Maria do Socorro, foi inaugurado dois anos após a publicação da resolução que requer a consideração do conforto acústico e da saúde da comunidade quando as turbinas estiverem a menos de 400 metros de residências, e teve autorização da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e órgãos ambientais do Rio Grande do Norte. Outra dezena de residências estão dentro deste raio, sem terem recebido qualquer comunicado, consulta ou indenização.

Na Alemanha, a distância mínima entre aerogeradores e residências é de um quilômetro, definida por lei federal. No estado da Baviera, a regulação estipula que a distância deve ser de dez vezes a altura da torre de geração. Na França, a distância mínima é de 500 metros.

Alguns municípios e estados brasileiros estudam adotar restrições mais rigorosas quanto às distâncias, porém a aprovação é travada pela falta de estudos independentes de impactos sociais e ambientais da implantação das usinas eólicas e fotovoltaicas na região da Caatinga.

Desmatamento para parques solares

Além da poluição sonora, as energias renováveis também podem estar associadas a desmatamento, em especial no caso dos parques solares. Washington Rocha, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e coordenador do MapBiomas Caatinga, critica a ausência de normas mais rigorosas sobre o tema. A ONG é responsável pelo mais completo levantamento sobre o desmatamento causado por empreendimentos de energias renováveis no bioma.

“Ninguém, nem nós nem os moradores, somos contra a implantação de fontes de energia menos poluentes, mas é um processo que vem passando por cima de qualquer análise de impactos locais e globais, e precisaria ser mais debatido e controlado pelos estados e pela União”, aponta. “Há uma pressão econômica enorme por parte de empresas e governantes para a aprovação de liberações ambientais, e o resultado é uma tendência de supressão da vegetação, sobretudo nas usinas solares”, afirma o geólogo.

Os dados mais recentes do MapBiomas colocam o pequeno município de Santa Luzia, no interior da Paraíba, como vice-campeão de desmatamento do único bioma 100% brasileiro. Até dezembro de 2022, foi desmatada uma área de 861 hectares para instalar usinas solares em Santa Luzia, que tem 230 hectares. A área desmatada é quase quatro vezes maior que a própria cidade. Em toda a Caatinga, diz o MapBiomas, já há mais de 4 mil hectares desmatados para instalação de usinas solares ou eólicas até o final de 2022.

“Existe esta imagem da Caatinga como um deserto, mas boa parte dela é composta de matas secas, que durante metade do ano compõem uma vegetação verde, exuberante, e repleta de espécies endêmicas da fauna e flora, sobrevivendo nos 50% dela que restam”, afirma o biólogo Mario Moura, que estuda os impactos das mudanças climáticas no bioma.

Questionada pela DW, a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) afirmou em nota que a implantação de usinas solares no Brasil “atende a rigorosos requisitos legais, regulatórios e ambientais” e ocorre em interação com as comunidades e gestores públicos locais. A entidade diz ainda que as usinas geram empregos durante a sua construção e deixam um “legado positivo de desenvolvimento” no entorno dos projetos, por meio da manutenção e operação das plantas.

Impactos ambientais

Um estudo produzido pelo Observatório Nacional da Caatinga no ano passado mostrou que cada hectare de Caatinga preservada em áreas mais secas pode absorver quase 4,5 toneladas de CO2. Santa Luzia, com seus 861 hectares desmatados para instalação de painéis solares, deixa de absorver 3.800 toneladas de carbono por ano.

Faltam ainda estudos sobre o aquecimento provocado pelas placas. A reportagem da DW mediu uma diferença de 5ºC de temperatura entre os parques solares e a cerca de 4 quilômetros destes, de 34ºC para 39ºC.

Calor que sufoca Paulo Medeiros e seu açude quase centenário. Espremido entre dois grandes parques fotovoltaicos, o reservatório de água da propriedade de 55 hectares vem sofrendo com o assoreamento provocado pela supressão das árvores, que contêm a erosão. Cada parque solar, após o corte de toda a vegetação, cobre toda a área com areia e brita, e herbicidas são aplicados para impedir o crescimento de vegetação na área.

Há cerca de dois anos, conta Medeiros, uma chuva arrastou grande quantidade de material do parque para o açude, matando boa parte dos peixes. Após reclamação, a empresa Neoenergia, responsável pelo Complexo Solar Luzia, não assumiu a culpa pelo ocorrido, mas concordou em repor 8 mil alevinos de tilápia.

A reparação, porém, não restaurou a confiança e esperança do agricultor. “Cresci aqui, pescando e nadando nesta água, mas ele não aguenta nem mais dois anos, pode anotar”, diz, com um olhar desesperançoso de quem observa que a geração de energia limpa no Brasil é menos verde do que poderia ser.

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