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quinta-feira 10 de junho de 2021 às 05:03h

Só Brasil, Bangladesh e Butão usam urna eletrônica sem comprovante do voto impresso

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Brasil, Bangladesh e Butão são os únicos países que adotam a votação por urna eletrônica sem registro em papel em larga escala em eleições nacionais.

A Namíbia abandonou o sistema no ano passado, após questionamento na Justiça do país, e voltou para cédulas em papel. Na Rússia, urnas eletrônicas sem voto impresso foram usadas por apenas 9% do eleitorado na última eleição presidencial, em 2018, segundo a Comissão Central Eleitoral do país.

Segundo levantamento da Folha de S.Paulo, a maioria dos países que usa urnas eletrônicas adota a segunda geração dessas máquinas, que imprimem um comprovante em papel (o tal voto impresso), enquanto o Brasil ainda utiliza as de primeira geração.

No Brasil, uma nova discussão sobre a implantação de um comprovante de voto impresso foi puxada pelo presidente Jair Bolsonaro, que alega possíveis fraudes nas urnas eletrônicas sem nunca ter apresentado provas ou indícios. Nunca houve evidências de fraudes nas urnas eletrônicas, em uso desde 1996.

Atualmente uma proposta de emenda à Constituição sobre isso é discutida no Congresso, mas o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) já sinalizou que não haverá tempo para sua implementação em 2022, mesmo que aprovada na Câmara e no Senado.

A tramitação de uma PEC, de qualquer forma, é muito mais difícil do que projetos comuns, independentemente do mérito. Para ser promulgada, é preciso o voto de pelo menos 60% dos deputados e senadores, em dois turnos de votação em cada Casa.

Nas três tentativas anteriores, o Congresso aprovou a impressão do voto, mas em uma delas (2002) o próprio Legislativo a revogou. Nas duas seguintes (2009 e 2015), o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a medida sob os argumentos, entre outros, de risco de violação do sigilo do voto e de afronta aos princípios de economia e eficiência na gestão dos recursos públicos.

Em alguns países, o voto impresso pode ser conferido pelo eleitor através de um visor e depois cai automaticamente em uma urna, sem nenhuma intervenção humana. É o caso da Índia, que começou em 2011 a mudar seu sistema, que era igual ao brasileiro, e só em 2019 conseguiu concluir a transição.

Esse é o modelo defendido pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), autora da PEC do voto impresso, que está tramitando na Câmara. O texto da PEC prevê “a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.

Em outros países, como na Venezuela, após votar na urna eletrônica, o eleitor recebe seu voto impresso e o deposita, manualmente, em uma urna.

Especialistas apontam que o comprovante impresso confere maior confiabilidade ao processo. Hoje, a auditagem das urnas eletrônicas no Brasil só se faz em cima dos registros eletrônicos, ou seja, não há um comprovante que não seja dependente do software.

Segundo eles, é necessário ter um comprovante físico, independente do software. No entanto, a maioria rejeita mudar o sistema neste momento, a pouco mais de um ano e meio da eleição, por causa do tempo exíguo e da politização do tema.

“Mais uma medida de auditoria seria importante, mas em outro momento; agora causaria mais instabilidade, porque esse debate foi sequestrado no meio de uma enxurrada de fake news”, diz a advogada Ana Cláudia Santano, coordenadora-geral da Transparência Eleitoral Brasil.

Há grande circulação de desinformação nas redes sociais sobre supostas fraudes em urnas eletrônicas e o próprio presidente Bolsonaro, sem apresentar provas, tem feito reiterados ataques ao voto eletrônico.

“No atual contexto, a urna eletrônica garante segurança em várias etapas, mas obviamente o registro impresso daria uma segurança a mais –o que não quer dizer que a votação hoje em dia não seja íntegra”, diz Ana Cláudia.

A urna eletrônica possui inúmeras medidas de auditoria e segurança, como a zerésima, comprovante impresso mostrando que não havia votos armazenados na memória da urna no início da votação, e os boletins de urna, que são registros em papel emitidos por cada urna com informações como a quantidade de votos para cada candidato, além de brancos e nulos.

Diego Aranha, professor associado de segurança de sistemas na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e outros técnicos apontam que todas as possibilidades de auditagem disponíveis hoje em dia dependem do software –e, se o programa for adulterado, compromete todas as checagens.

O TSE afirma que o problema é resolvido com o Registro Digital do Voto (RDV) –que armazena em ordem aleatória nas urnas o voto de cada eleitor, criptografado.

“Esse é mais um mecanismo de auditoria, que permite a contagem eletrônica de votos e preservando o sigilo do voto de cada eleitor. Se o partido quiser, ele pode até imprimir esse registro”, diz o tribunal, em nota.

Especialistas afirmam, porém, que o RDV também se baseia no software, que pode ser adulterado –então não constitui contagem independente.

Aranha participou de dois testes públicos de segurança do TSE. Os testes permitem que equipes de técnicos em computação explorem o sistema e tentem encontrar vulnerabilidades.

Em 2012, Aranha e sua equipe acessaram os registros digitais dos votos. Embora os RDV sejam embaralhados, a equipe conseguiu colocá-los em ordem e, assim quebrar o sigilo do voto –saber como votou o primeiro eleitor, o segundo etc.

Em 2017, eles adulteraram o software de votação, alteraram o funcionamento da urna, colocaram uma propaganda com o nome de um candidato na tela e impediram que os votos pudessem ser armazenados na memória da urna. O TSE afirma ter corrigido as falhas.

Aranha afirma que até os testes públicos são um instrumento de auditagem insuficiente. “Os testes públicos de segurança só oferecem ambiente controlado e tempo restrito para os técnicos descobrirem vulnerabilidades –na vida real, obviamente, hackers têm muito mais tempo e flexibilidade”, diz.

Segundo o TSE, o fato de as urnas não estarem ligadas à internet é uma garantia de que não podem ser hackeadas. Especialistas como Aranha discordam.

“Qualquer atacante racional vai tentar adulterar o software antes de ser instalado nas urnas. Por exemplo, durante a gravação dos cartões de memória ou após eles serem gravados [cada cartão instala 50 urnas, um bom fator de escala para o atacante]”, diz Aranha.

“Um programador, um técnico do TSE, ou do TRE, alguém que carrega os cartões de memória [com o software] pode ter a capacidade de fazer isso. Não acho que aconteça, mas acho que é possível, não elimino esse risco”, afirma.

A votação paralela também é alvo de críticas. Nos dias das eleições, urnas selecionadas por sorteio são retiradas dos locais de votação e participam de uma cerimônia pública que funciona como uma simulação da votação. Para Aranha, o número de urnas usadas na votação paralela é muito pequeno para ter significância estatística.

O TSE rechaça as críticas ao sistema atual e diz ser “um equívoco afirmar que o sistema brasileiro é mais atrasado porque não imprime o voto”.

“Os sistemas eleitorais são intrinsecamente dependentes da legislação e da cultura dos povos que os utilizam. O Brasil, ao adotar o processo eletrônico de votação, venceu um histórico de fraudes em eleições com cédulas de papel”, diz o tribunal.

Segundo Santano, a maior preocupação no Brasil sempre foram as fraudes eleitorais, muitas delas possibilitadas pela violação de sigilo. Se o eleitor fica com um comprovante impresso de seu voto, ele pode ser usado como “recibo” em compras de votos, o voto de cabresto.

A urna eletrônica foi um avanço por ter diminuído a chance de ocorrência de fraudes, ao reduzir o risco de interferência humana na contagem dos votos.

“Durante muito tempo [quando havia votação com cédulas em papel], o Brasil teve eleições repletas de fraudes, o que deixou traumas. Então o principal valor para autoridades eleitorais é o sigilo do voto”, diz Santano.

“O objetivo maior era eliminar ao máximo a intervenção humana, pois era aí que ocorriam as fraudes –por isso a opção de se fazer tudo eletronicamente.”

O TSE aponta também para a experiência de 2002, em que módulos impressores foram instalados em 6% das urnas eletrônicas. Segundo o tribunal, foi um desastre.

“As falhas nos módulos impressores causaram muitas filas, votações que entraram pela madrugada, eleitores que saíram das cabines de votação sem confirmar seus votos e necessidade de muitas seções de terem que ir para a votação em cédula”, disse a corte em nota.

Defensores do sistema, no entanto, afirmam que o TSE não se empenhou na experiência, e quase não fez campanha educativa e treinamento.

O grande obstáculo para o voto impresso é uma possível violação do sigilo do voto. Duas propostas do Legislativo prevendo voto impresso, em 2009 e 2015, foram barradas após decisões do Supremo. No entendimento da corte, a impressão dos comprovantes poderia ser uma forma de violar o sigilo da votação.

Fernando Neisser, membro fundador da Abradep, aponta para a possibilidade de quebra de impressoras, que exigiria intervenção dos mesários, potencialmente quebrando o sigilo do voto.

“Voto com impressão leva o dobro do tempo, impressora trava e o papel embola”, diz. “Além disso, não se sabe ainda como seria o embaralhamento das informações de eleitor e de seu voto com o comprovante impresso.”

O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, afirmou em audiência na Câmara nesta quarta (9) que o comprovante impresso exporia a ordem dos votos —em quem cada eleitor votou para deputado, senador, governador, presidente—, o que permitiria violar o sigilo.

Em tese, durante auditagem ou emissão de boletim de urna, poderia ligar voto à identidade do eleitor e servir como “recibo” de compra de voto. Hoje, o boletim de urna apresenta os votos em ordem aleatória, porque eles são embaralhados pelo software da urna eletrônica antes da impressão.

Segundo o TSE, para que funcione como comprovante, o registro impresso precisa ter “informações suficientes para ele conseguir distinguir seu voto dos demais quando tal registro for utilizado para auditoria ou recontagem. Assim, para ser inquestionável a verificação e atender ao propósito do voto verificado, há a necessidade de se criar algo que torne cada voto individual e, portanto, quebra-se o sigilo.”

Restam outros desafios. Não está claro como eleitores com deficiência visual ou analfabetos verificariam o comprovante impresso. Um eleitor confuso ou de má fé dizendo que o registro de papel não corresponde às suas escolhas na urna eletrônica poderia anular o voto e votar de novo? Quantas vezes?

O custo envolvido é outra barreira. Segundo o TSE, seriam necessários R$ 2 bilhões para a mudança. O valor é baseado em estimativas de 2018 e considera a implementação do voto impresso em 100% das urnas eletrônicas.

Inclui não apenas a aquisição do módulo impressor (avaliado, com base nos valores de 2018, em cerca de R$ 1,6 bilhão), mas também a aquisição da urna plástica descartável para armazenamento dos votos impressos, bobinas de papel, lacres de segurança, além de transporte e armazenamento.

“Porém, é muito provável que, em novo procedimento licitatório, esses valores sejam ainda mais elevados, tendo em vista a variação cambial, a crise mundial de abastecimento de componentes eletrônicos e as dificuldades logísticas impostas pela pandemia da Covid-19”, diz o TSE.

Será preciso discutir quais serão os parâmetros para um partido ou candidato pedir uma recontagem de votos –nos EUA, dependendo do estado, é preciso que haja uma diferença de votos até certo limite.

O presidente do TSE aponta para o perigo da judicialização. “São 5.600 municípios e 450 mil candidatos —se uma porcentagem deles resolvesse impugnar a votação e pedir recontagem, seria um caos”, disse Barroso em vídeo.

A deputada Bia Kicis afirma que, a não ser que o sistema seja implementado em 100% das urnas em 2022, a eleição não será confiável.

Segundo Paulo Matias, professor do Departamento de Computação da Universidade Federal de São Carlos, há muitos anos a comunidade acadêmica tem cobrado que o TSE migre para um processo eleitoral que seja independente de software, conforme proposta em lei.

“Mas todas as vezes foi barrada pelo STF. O problema é que esse posicionamento trava todo o desenvolvimento da tecnologia, pois o TSE não vê como prioridade fazer testes internos com o mecanismo, e tampouco pode fazer testes em algumas seções eleitorais numa eleição real”, diz o professor.

“Por outro lado, temos o posicionamento dos governistas, que insistem que o mecanismo seja implementado às pressas em 100% das seções eleitorais já em 2022”, afirma Matias.

Segundo ele, é necessário um equilíbrio. “Os mecanismos de segurança defendidos por pesquisadores, já implementados em diversos países, não são inconstitucionais e é importante implementar esse tipo de mecanismo no Brasil”, diz o pesquisador.

“No entanto, é necessário um cronograma de estudos e implantação razoável, para que o sistema possa ser implementado aos poucos, com os cuidados que todo projeto de engenharia demanda.” Matias estima ser impossível fazer uma transição completa antes de 2028.

PAÍSES QUE ADOTAM URNA ELETRÔNICA

Albânia
Urna eletrônica com voto impresso

Argentina
Urna eletrônica com voto impresso * (província de Salta)

Bangladesh
Urna eletrônica sem comprovante de papel

Butão
Urna eletrônica sem papel

Brasil
Urna eletrônica sem papel

Bulgária
Urna eletrônica com registro em papel

Bélgica
Urna eletrônica com registro em papel *

Estados Unidos
Usa urna eletrônica com registro impresso, cédulas em papel escaneadas e urna eletrônica sem registro impresso (menos de 5%)

França
Cerca de 60 cidades usam urna eletrônica com registro em papel

Índia
Urna eletrônica com registro em papel

Irã
Urna eletrônica com registro em papel

México
Urna eletrônica com comprovante em papel em uma minoria das seções

Namíbia
Urna eletrônica sem comprovante em papel (em eleições em 2020, após questionamento na Justiça, voltou para voto em cédula de papel)

Panamá
Urna eletrônica com registro em papel

Paraguai
Urna eletrônica com registro de papel

Peru
Urna eletrônica com registro em papel

República do Congo
Urna eletrônica com registro em papel *

Rússia
Na eleição presidencial de 2018, 9% das urnas eram eletrônicas, sem registro de papel, e o restante eram cédulas de papel escaneadas ou só depositadas nas urnas

Venezuela
Urna eletrônica com registro em papel

* Argentina, Bélgica e República do Congo usam urnas eletrônicas que não armazenam os votos eletronicamente, elas apenas imprimem o comprovante que, então, é depositado pelo eleitor em uma urna. O sistema é chamado Impressor Eletrônico de Cédulas

Fontes: Instituto para Democracia e Assistência Eleitoral, Organization for Security and Cooperation in Europe, governos dos países, Diego Aranha, Paulo Matias

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