A desancoragem das expectativas do mercado para a inflação justifica a “prudência e o conservadorismo” demonstrados pelo Copom na decisão da última quarta-feira, 22, diz o diretor de Pesquisa Macroeconômica para América Latina do Goldman Sachs, Alberto Ramos. Para o economista, o Banco Central deveria manter o tom “hawkish” – postura de combate a inflação por meio de alta dos juros – na ata desta terça-feira, 28 – apesar do apelo do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por uma “atenuação” da comunicação.
Para o economista, não há base nas críticas que acusam o BC de ter uma condução muito dura da política monetária. Ramos lembra que a autarquia já demonstrou a preocupação de atingir a economia o mínimo possível com os juros altos, por mirar a convergência da inflação à meta de 3% apenas em 2024.
“Se você quisesse ter uma leitura muito purista, o BC deveria estar subindo juros – que eu acho que não deve, e não vai, porque a política monetária já é suficientemente restritiva neste contexto. Mas a verdade é que a inflação para este ano vai ficar muito acima da meta, e a inflação para 2024 também se apresenta acima da meta. Então, o BC em si já está dando uma colher de chá neste processo”, afirma.
Ramos recebeu o Estadão/Broadcast para uma entrevista exclusiva na sede do banco no Brasil, em São Paulo, onde está esta semana para participar da conferência de macroeconomia do Goldman Sachs sobre o País. Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Qual é a sua avaliação sobre a comunicação do Banco Central?
Claramente o BC está muito focado em forçar a inflação para a meta em 2024 ou 2025 e, por isso, tem sinalizado que não tem muito espaço no curto prazo para cortar juros e até mencionado que, se a trajetória de convergência não se materializar como esperado, poderia voltar a subir o juro. Acho que a barra para voltar a subir o juro é extraordinariamente alta. Mas a desancoragem das expectativas e o aumento das projeções do BC para o IPCA de 2024 justificam a prudência e o conservadorismo do Copom.
Em um relatório divulgado após a última decisão do Copom, o Goldman Sachs afirmou que a política monetária é hoje a “única âncora macroeconômica crível do Brasil”. Pode detalhar essa visão?
A outra âncora seria a política fiscal. O que a gente observou nos últimos anos foi uma erosão contínua das duas grandes âncoras fiscais, a Lei de Responsabilidade Fiscal e o teto dos gastos. O governo tem sinalizado que vai apresentar um substituto para o teto dos gastos, mas, até hoje, essa âncora não existe. O que existem são declarações vindas do governo, que mostram uma intenção de usar o gasto público, o balanço das empresas públicas e o crédito como instrumentos para dinamizar o investimento público e a demanda agregada. Significa que a regra fiscal foi enfraquecida. Vamos ver como vem esse novo arcabouço fiscal.
Quais são as expectativas para essa nova regra?
Eu, pessoalmente, não tenho a expectativa de que virá uma grande regra fiscal. No final, não há muitas maneiras de vir com uma regra que seja crível e que leve à estabilização da dívida pública a médio e longo prazo: por mais criativo que você seja, no final, tem de controlar o gasto, a não ser que tenha um boom de receita. Só vai ter um boom de receita se você aumentar a carga tributária, que já é extraordinariamente alta. Provavelmente o Congresso não daria apoio a um aumento significativo da carga tributária, e o Brasil já gasta muito em termos de porcentual do PIB. Então, vai ter de ser uma regra que de alguma maneira permita que o gasto aumente, mas não necessariamente em termos de porcentual do PIB. Pode incorporar o crescimento do PIB per capita, o crescimento da população, e que tenha algum componente contracíclico.
É fundamental que a regra crie um limite de gasto?
Por que quero controlar o gasto? Porque você não quer se endividar mais. O Brasil tem um nível de endividamento muito mais alto do que os países de renda média nos mercados emergentes, e tem uma carga tributária altíssima. É uma combinação rara: arrecada muito, gasta ainda mais, gasta mal e investe pouco. Então, há um trabalho grande a fazer na composição do gasto, aferir se o que se gasta hoje faz sentido. Há uma agenda importante de racionalizar o gasto. Acho que a grande aposta do governo é que vai ser uma regra em que o gasto é de alguma forma limitado, mas não de forma muito agressiva; e que o governo vai fazer uma aposta de que o crescimento nominal da economia é relativamente vantajoso, e que isso vai gerar superávits primários crescentes. Nessa trajetória, se alcança, no médio prazo, uma estabilidade da dívida.
Vocês viram, no IPCA-15 de março, “sinais esperançosos de moderação das pressões inflacionárias na margem”. O que isso significa para a condução da política monetária?
É o esperado. A inflação já atingiu o seu pico, a economia desacelerou, há uma certa estabilização dos preços de commodities, e alguns dos choques que elevaram a inflação estão se estabilizando. O fato de a inflação estar cedendo não significa que podemos dar um victory lap, porque a inflação de serviços e os núcleos estão muito pressionados. No próximo IPCA, a inflação anual vai cair abaixo de 5%, para 4,9%, 4,8%. Daqui a dois ou três meses, a inflação pode ficar na parte baixa da casa de 4%, ou até em 3,8%, 3,9%. Mas o problema é que o efeito-base vai contra no segundo semestre, que é quando houve, em 2022, os cortes agressivos de impostos sobre combustível. Então, o IPCA vai subir a 6% no final do ano. Está em trajetória gradual de convergência, mas vai ser lenta. Vai requerer uma política monetária bastante disciplinada e focada e paciência, mas vai ceder, desde que se contenha o gasto público e o crédito, e desde que as expectativas não se movam na direção oposta.
Esse vale da inflação no meio do ano – com a inflação dentro da banda da meta – gera o risco de piora da relação entre governo e Banco Central?
Mais do que o risco, é uma realidade. Pode intensificar, claramente. A questão é o BC ser bastante didático, explicar que seu mandato é entregar a inflação na meta, e que a inflação é algo extremamente nocivo. Mas o que é importante nessa discussão é olhar isso do ponto de vista dinâmico. Este mesmo BC levou a Selic a 2%. Este mesmo BC fez o ciclo de aperto monetário durante a presidência de Bolsonaro e subiu o juro durante uma eleição, o que enfraquece o argumento político. O que é preciso entender é que o BC também quer uma taxa de juros mais baixa. A questão é ter um pouco de paciência. É uma questão de meses até que essa trajetória de convergência da inflação esteja mais estabelecida, até que haja uma ancoragem das expectativas, e que o BC possa começar a cortar os juros. Aí, vamos chegar a um ponto em que temos duas coisas boas: inflação baixa e juro baixo.
Como avalia os argumentos que criticam o BC por ser muito “hawkish” na condução da política monetária?
Se você quisesse ter uma leitura muito purista, o BC deveria estar subindo juros – que eu acho que não deve, e não vai, porque a política monetária já é suficientemente restritiva neste contexto. Mas a verdade é que a inflação para este ano vai ficar muito acima da meta, e a inflação para 2024 também se apresenta acima da meta. Então, o BC em si já está dando uma colher de chá neste processo. Duas reuniões atrás, quando já era muito claro que a inflação de 2023 iria ficar acima da meta, o BC poderia perfeitamente ter subido o juro um pouco mais para minimizar o desvio ainda este ano, para dar mais garantias de que a inflação convergiria à meta em 2024. Mas não o fez – e fez muito bem em não fazer – porque a política monetária já é bem restritiva e não quer penalizar demais a economia. O BC está basicamente dizendo que a convergência da inflação para a meta é algo para o fim de 2024, talvez em algum ponto de 2025. Em algum ponto, ele vai começar a aliviar a política monetária, mas é necessário que a política fiscal e parafiscal ajudem. Mais crédito subsidiado do BNDES, uma âncora fiscal pouco crível, a sinalização de que “gasto é vida”, isso preocupa e dificulta a vida do BC.
O Copom reescreveu seu balanço de riscos para incluir a turbulência do sistema financeiro internacional e uma desaceleração mais forte do crédito doméstico como riscos baixistas para a inflação. São coisas que podem levar a uma antecipação do ciclo de cortes?
Certamente. Vamos falar com o Banco Central amanhã (quarta-feira) e tenho exatamente essa pergunta. No balanço de riscos, ele fez duas alterações importantes: adicionou o risco para cima de que o processo de desancoragem das expectativas continue ou se agrave; e adicionou para baixo que a desaceleração do crédito seja mais agressiva do que o esperado. A pergunta que tenho é: esses dois riscos se equivalem? Há quem ache que esse risco para baixo predomina. Se ele se materializar, se você começar a observar que as condições de crédito se tornam muito mais restritivas, significa que os bancos, através do canal do crédito, estão fazendo o que o BC queria ao subir os juros. Esse aperto pode tornar a política monetária mais restritiva, o que o BC provavelmente não quer no curto prazo, e poderia levar a algum corte dos juros.
Na sua avaliação, esses riscos se equivalem?
Na minha avaliação, como são riscos, não requerem uma ação no curto prazo, requerem monitoramento. Se um credit squeeze se tornar realidade e as expectativas de inflação se estabilizarem, o balanço de riscos fica assimétrico, e o inverso também é verdade. Se você me perguntar qual é o risco que tem maior probabilidade de se materializar, talvez seja o do crédito. Mas não tenho uma grande convicção sobre isso.
A queda de braço entre governo e BC tem o potencial de piorar a dinâmica de variáveis como câmbio e expectativas e atrasar a queda da Selic?
Na semana passada, quando se começou a levantar a possibilidade de um processo no Senado para remover o presidente do BC, isso fez preço. Se vier uma crítica mais agressiva, ou alguma manobra para mudar a composição do Copom de uma maneira que gere mais ruído interno, ou algo que reduza a capacidade do presidente do BC de olhar só a parte técnica na calibração da política monetária, claramente pode ter impacto nas expectativas e no câmbio, como já teve.
Depois da divulgação do comunicado do Copom, o ministro Fernando Haddad defendeu que o BC poderia usar a ata para “moderar” o seu tom, na mesma linha do que teria sido feito na primeira reunião do ano. Esta é uma possibilidade?
Tecnicamente, a ata não deveria ter mensagem diferente do que é o comunicado. O que o governo quer eu também não sei – primeiro, porque o arcabouço fiscal ainda não existe; e, segundo, porque o BC não vai comentar uma proposta que ainda precisa ser transformada em lei. O BC não tem de reagir, não tem de falar “que pacote maravilhoso”, ou “que pacote horrível”, porque não é o papel do BC adjetivar ou avaliar a qualidade da política fiscal. Quem faz essa avaliação é o mercado, e isso tem reflexo em variáveis de mercado, como câmbio e taxa de juros, que o BC incorpora no seu modelo. Não tem de concordar ou discordar. E vai ter de incorporar no modelo uma certa trajetória de política fiscal anunciada pelo governo.
Dados da B3 mostram que os investidores estrangeiros retiraram recursos da Bolsa em fevereiro e março. A percepção do estrangeiro sobre o Brasil piorou?
Há um conjunto de questões de política microeconômica – marcos regulatórios, manejo das empresas públicas, sinalização do BNDES sobre o crédito subsidiado -, além da própria fricção entre governo e BC e da sinalização de uma política fiscal que pode privilegiar os gastos, que reduzem um pouco o interesse no Brasil. E o entorno externo, acho, potencializou um pouco esse cenário.
Há o risco de uma desaceleração do crédito levar o governo a aumentar a concessão de crédito subsidiado e isso levar a um ‘círculo vicioso’, por reduzir a potência da política monetária?
Certamente, gera um círculo vicioso. Quanto mais expansão de crédito tiver através de bancos públicos, e quanto mais essa expansão ocorrer a taxas que não são de mercado, mais isso reduz a potência da política monetária. Isso significa que o BC, para gerar o mesmo efeito na inflação, tem de conduzir a política monetária de forma mais apertada. Quanto mais o BC mantém o juro alto, mais o governo e os bancos públicos se sentem na necessidade de compensar isso com maior abundância de crédito, e isso gera esse círculo vicioso, como foi lá atrás.