Em um novo ponto de atrito entre o Judiciário e o Legislativo, o Senado Federal recorreu da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou ao poder público a oferta gratuita de transporte coletivo no dia de eleição, já a partir de 2024.
Para o Senado, a política pública deveria ser formulada pelo próprio Congresso Nacional e não imposta pela Corte. O pedido é para que, caso a medida se mantenha, o financiamento seja feito pela Justiça Eleitoral, sem ônus aos Estados e municípios.
O recurso aponta segundo Luísa Martins, do jornal Valor, que a decisão do STF, embora bem-intencionada, não define claramente, por exemplo, como será feito o diálogo entre os municípios e as concessionárias ou permissionárias de transporte.
Uma das preocupações, de acordo com o Senado, é que as empresas se recusem a cooperar com isso sem que haja um mecanismo pré-estabelecido de compensação financeira.
“Os municípios, já acostumados a fazer mais com menos, veem-se diante de uma nova encruzilhada: absorver custos adicionais sem o devido suporte. A decisão pode significar uma sobrecarga insustentável para as já combalidas finanças municipais.”
O Senado ainda alega que as políticas de gratuidade no transporte público “causam um choque significativo nas finanças municipais e podem resultar em aumentos explosivos nas tarifas pagas pelos passageiros”.
O recurso também critica a falta da indicação de uma fonte de custeio, o que é “incompatível com a sustentabilidade fiscal”, e lembra que o julgamento no Supremo ocorreu em outubro de 2023, quando o projeto de lei orçamentária já estava em trâmite.
“O financiamento de tal política deve ser debatido e aprovado pelo Congresso Nacional, dentro do ciclo orçamentário, assegurando que os recursos sejam alocados de forma transparente e sob a égide do princípio da legalidade”, diz o texto.
“A oferta de transporte gratuito em dias de eleição é uma causa nobre, mas não deve se sobrepor sobre a autonomia municipal, a responsabilidade fiscal e a sustentabilidade financeira.”
Além disso, o Senado destaca que “tal decisão pode levar a cortes em outras áreas essenciais ou ao aumento da dívida pública, afetando a solvência futura do ente e a sua capacidade de investir em áreas prioritárias”.
Há também uma crítica ao STF por não ter imposto qualquer condição para o usufruto do benefício, como a apresentação do título de eleitor ou a fixação de um período de tempo para a gratuidade — de duas horas antes a duas horas depois do pleito, por exemplo.
“O acórdão permite, portanto, graves abusos, na medida em que se enfocou na universalização do benefício, em vez de adstringi-lo unicamente aos eleitores efetivamente carentes e vulneráveis.”
Para o Senado, a decisão da Corte também desconsiderou a diversidade de realidades dos municípios brasileiros, causando “ônus desproporcional para alguns, enquanto outros talvez possam suportar tais medidas sem grandes dificuldades”.
O recurso é assinado pelos advogados Gabrielle Tatith Pereira (coordenadora do Núcleo de Assessoramento e Estudos Técnicos), Fernando Cesar Cunha (advogado-geral adjunto de Contencioso) e Thomaz Gomma de Azevedo (advogado-geral do Senado).
Ao julgar o caso no ano passado, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu que a implementação da medida passasse pelo Legislativo — porém, segundo ele, a omissão viola direitos fundamentais, o que justifica a ação do tribunal.
“Considerada a extrema desigualdade social existente no Brasil, a ausência de política pública de concessão de transporte gratuito no dia das eleições tem o potencial de criar, na prática, um novo tipo de voto censitário, que retira dos mais pobres a possibilidade de participar do processo eleitoral”, disse ele, relator do processo.
Segundo o ministro, em uma democracia, as eleições devem contar com a participação do maior número possível de eleitores. Ele afirma que a gratuidade assegura a igualdade de participação e também combate ilegalidades, “evitando que o transporte sirva como instrumento de interferência no resultado eleitoral”.
O julgamento foi unânime no Supremo. Os ministros decidiram que, nos domingos de eleição, o transporte público municipal e intermunicipal deve ter frequência compatível àquela praticada em dias úteis.
Na ocasião, os ministros chegaram a abordar a questão da fonte de custeio. O ministro André Mendonça, por exemplo, observou que os Legislativos locais deveriam prever essas despesas no orçamento de 2024. “Há tempo suficiente para se adotar as medidas administrativas e legais para o atendimento da decisão.”
A ação foi ajuizada no Supremo pelo Rede Sustentabilidade. O partido afirmava que a omissão do poder público em oferecer transporte gratuito violava o direito ao voto — isso porque, em muitos casos, o custo das passagens supera o valor da multa pela abstenção.