A última CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Congresso Nacional que provocou um terremoto político no país foi a Mista dos Correios, criada em 2005 e encerrada em 2006. Com a quebra de sigilos bancários, telefônicos e até da portaria de um prédio em Brasília, investigou em detalhes o pagamento a parlamentares que sacavam o dinheiro na boca do caixa de uma agência do Banco Rural.
Anos depois, conforme o portal Uol, o presidente da CPI, o senador Delcídio Amaral (PT-MS), revelou, em delação premiada, que a comissão “segurou a barra” do então senador Aécio Neves (PSDB-MG). Segundo Delcídio, seu colega tucano teria conseguido o atraso do envio de dados do Banco Rural para a CPI a fim de fazer uma “maquiagem” nas informações com a destruição de “dados bancários comprometedores que envolviam Aécio Neves, Clésio Andrade, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Marcos Valério e companhia”.
Em 2018, a pedido da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, o ministro relator do inquérito aberto no STF para investigar essa parte da delação, Gilmar Mendes, arquivou a investigação porque a PF disse não ter encontrado dados que corroborassem a versão do senador petista. Ficou o dito pelo não dito. Aécio “e companhia” foram inocentados.
Em 2021, as condições estão dadas para um trabalho marcante da futura CPI da Covid, que deverá ser criada nesta semana após a leitura do requerimento em plenário, determinada pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso. O Senado tem a possibilidade de destrinchar os erros, as omissões, a motivação e quem sabe os crimes da resposta apresentada por Jair Bolsonaro e pelo comando do Ministério da Saúde à pandemia do coronavírus que já matou mais de 350 mil pessoas no país.
Há fato determinado – basta ver o massacre em Manaus (AM), ocasionado pela falta de oxigênio medicinal – e muitas dúvidas que precisam ser esclarecidas.
Há clima político em parte do Senado favorável à apuração. E também há um vazio investigativo. Na Justiça Federal de Manaus tramita uma ação civil pública, mas os procuradores da República de primeira instância dificilmente terão a força política para, por exemplo, conseguir a quebra judicial do sigilo das comunicações de um ministro. Também dificilmente conseguiriam devassar os e-mails e mensagens de aplicativos de telefone celular de servidores do comando da Saúde e do Palácio do Planalto. É para isso que existem as CPIs.
A PGR (Procuradoria Geral da República) já informou ao STF, em março, que supostamente faz apurações preliminares sobre as condutas do ex-ministro Eduardo Pazuello e de Bolsonaro a respeito da prescrição de remédios de eficácia não comprovada. Contudo, o domesticado papel que o procurador-geral Augusto Aras tem desempenhado desde setembro de 2019, na condição de pré-candidato a uma vaga no Supremo, desautoriza qualquer expectativa sobre esse trabalho.
Mas há igualmente grandes dúvidas sobre a CPI da Covid, cujos integrantes deverão ser escolhidos a partir de indicações dos líderes partidários. O comando da comissão ficará com aliados de Bolsonaro? A Mesa do Senado dará as condições necessárias para o bom funcionamento da comissão? Os parlamentares estão de fato decididos a aprofundar o assunto ou farão apenas uma investigação pro forma, como as CPIs que temos visto desde, pelo menos, o ano de 2006?
Nos últimos 15 anos nenhuma CPI no Congresso Nacional foi capaz ou teve interesse de desenvolver uma investigação que incomodasse o coração dos três Poderes. Antes visto com respeito, o instituto das CPIs está desacreditado no Brasil.
Em pelo menos um caso, houve a denúncia de que se tornou um balcão de negócios. Conforme a delação de empreiteiros e uma denúncia feita em 2015 ao STF pelo então procurador-geral Rodrigo Janot, o senador falecido em 2014 Sérgio Guerra (PSDB-PE), que era membro titular da CPI da Petrobras, em 2009 teria pedido R$ 10 milhões para que a CPI fizesse uma apuração “genérica”. A denúncia contra outro parlamentar pelo mesmo evento, Eduardo da Fonte (PP-PE), foi depois arquivada pela Segunda Turma do STF.
No vídeo entregue à Justiça pelos delatores, Guerra aparece dizendo: “Nossa gente vai fazer uma discussão genérica, não vamos polemizar as coisas. […] Eu tenho horror a CPI, nem a da Dinda? Eu assinei, é uma coisa deplorável. Fazer papel de polícia, parlamentar fazendo papel de polícia”.
De fato, a CPI da Petrobras de 2009 terminou esvaziada e de forma melancólica. Cinco anos depois, em março de 2014, estourou a Operação Lava Jato que destampou uma usina de subornos e desvios dentro da Petrobras. Não se sabe se a CPI não viu ou fez que não viu, o importante aqui foi o resultado: mais descrédito para o instituto das CPIs.
De 2006 para cá, o cenário é o mesmo. As CPIs criadas tanto na Câmara quanto no Senado pouco acrescentaram às investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal que já estavam em andamento na Justiça, como a CPMI do Cachoeira, de 2012, ou foram usadas para factoides em perseguições políticas e ideológicas, como a CPI “da Funai e do Incra”. Esta segunda, comandada pela bancada ruralista, virou motivo de vergonha para o Congresso ao indiciar antropólogos, indigenistas e procuradores da República que estavam apenas fazendo seu trabalho em defesa de direitos dos povos indígenas.
Hoje no Senado há duas CPIs em andamento: uma sobre a situação das vítimas e familiares do acidente da Chapecoense e outra das Fake News. A segunda começou com grande expectativa, mas foi rapidamente superada pelas descobertas de um inquérito aberto e tocado pelo próprio STF. A CPI, aliás, está suspensa há um ano, em virtude dos efeitos da pandemia do coronavírus.
A partir desta semana, com a CPI da Covid, o Senado terá a chance de resgatar a imagem das CPIs ou caminhar para um novo fiasco. Pelo retrospecto recente, a segunda opção parece ser a mais provável, mas CPI é sempre CPI, pode começar de um jeito e terminar de outro, para desespero de Bolsonaro.