O Brasil vive uma certa calmaria quando o assunto é sarampo.
Segundo o Ministério da Saúde, não foram registrados novos casos da doença desde 2022, e a cobertura vacinal subiu mais de 10% nos últimos dois anos.
Em outras partes do mundo — como a Europa e alguns lugares dos Estados Unidos — a situação é oposta: há uma crescente onda de casos e até de mesmo mortes.
Houve um aumento de 45 vezes no número de infecções pelo vírus nos países europeus.
A situação epidêmica fez a Agência de Segurança de Saúde do Reino Unido classificar o sarampo como um “incidente nacional”.
Mas o que explica essa diferença?
E o que o Brasil precisa fazer (ou continuar fazendo) para evitar que a situação do sarampo também piore no país?
O que acontece na Europa
Em dezembro do ano passado, o escritório da Organização Mundial da Saúde (OMS) na Europa classificou o aumento de casos de sarampo no continente como “alarmante”.
Em 2023, essa região registrou 42,2 mil novas infecções por este vírus. No ano anterior, haviam sido menos de mil casos.
A OMS aponta que a taxa de novos pacientes acelerou recentemente — e deve continuar a subir se “medidas urgentes não forem tomadas para prevenir o espalhamento futuro”.
Como citado no início da reportagem, a Agência de Segurança em Saúde do Reino Unido classificou a emergência do sarampo como um “incidente nacional”.
Um artigo publicado pelo periódico acadêmico Nature relaciona este cenário à queda nas taxas de vacinação nos países europeus.
“Cerca de 85% das crianças britânicas com menos de cinco anos receberam as duas doses da vacina tríplice viral”, aponta o texto.
As autoridades calculam ser necessário vacinar pelo menos 95% da população para garantir a imunidade de rebanho — ou seja, um nível de proteção coletiva que impede surtos e epidemias.
Entre os fatores para o baixo índice de vacinados, a Nature cita a pandemia de covid-19 — que atrapalhou o calendário de imunização de muita gente — e a disseminação de notícias falsas sobre as doses que protegem contra sarampo e outras diversas doenças infecciosas.
No dia 22 de janeiro, o serviço público de saúde do Reino Unido lançou uma campanha de vacinação para conter a crise.
Além de pedir que pais e tutores levem as crianças para tomar as doses, profissionais de saúde vão entrar em contato com as famílias cujos filhos de 6 a 11 anos estão desprotegidos do sarampo.
Os Estados Unidos também registraram casos da doença nas últimas semanas, embora os números sejam bem menores quando comparados à Europa.
Entre 1º de dezembro e 31 de janeiro, foram 23 diagnósticos espalhados por Geórgia, Missouri, Nova Jersey e Pensilvânia.
No mundo, os casos de sarampo cresceram 18% entre 2021 e 2022, diz a Nature.
A OMS também alerta que as mortes pela doença subiram 43% nesse mesmo período.
O que acontece no Brasil
Em 2016, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que representa a OMS no continente americano, deu ao Brasil um certificado de eliminação do sarampo.
A notícia, muito comemorada à época, confirmava que o país estava livre do vírus, graças a décadas de campanhas de vacinação e aos programas de vigilância e detecção de casos.
Mas, em 2019, o Brasil perdeu o certificado por um surto que se espalhou por vários Estados.
Em 2016 e 2017, o Brasil não teve sequer um caso de sarampo, como mostra o gráfico a seguir.
Já em 2018, foram mais de 9,3 mil infecções. No ano seguinte, o número subiu para 20,9 mil e seguiu elevado em 2020, com 8,1 mil casos.
O cenário começou a melhorar em 2021 e 2022 — e o país voltou a não registrar nenhuma infecção por sarampo em 2023.
Essas curvas de casos podem ser explicadas em grande parte pela vacinação, apontam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
A cobertura vacinal com a primeira dose desse imunizante foi de praticamente 100% entre 2010 e 2014.
Em 2015 e 2016, as taxas começaram a cair, mas ainda dentro do limite de 95% preconizado pelas agências de saúde para garantir a imunidade de rebanho.
Foi nesse período que os casos de sarampo acabaram, e o país ganhou o certificado de eliminação.
De 2017 em diante, porém, a situação se complicou: com pequenas variações, a cobertura vacinal caiu pouco a pouco e chegou a alarmantes 74,9% em 2021.
Na prática, isso significou que um quarto das crianças brasileiras estavam desprotegidas de uma doença altamente contagiosa e potencialmente fatal.
Com a população sem imunidade, uma epidemia estourou.
A situação começou a melhorar a partir de 2022, quando a cobertura vacinal chegou a 80,7%.
No ano passado, esse índice aumentou para 85,6% — o que foi bastante comemorado pelo Ministério da Saúde.
“Quero dizer que o movimento pela vacinação venceu. Todos alcançamos juntos o objetivo de reverter a trajetória de queda das coberturas vacinais. A sociedade atendeu ao chamado e se incluiu nesse movimento”, discursou a ministra Nísia Trindade em dezembro.
“Gostaria de lembrar o que já disse a OMS: a vacina, junto com a água tratada, é o que garantiu a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa em todo o mundo.”
A pediatra Mônica Levi, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), avalia que houve recentemente uma reestruturação do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde, que ajudou na trajetória de recuperação dos índices vacinais.
“Ainda há muito a ser feito para restaurarmos o índice de 95%, mas, ao menos, vemos uma reversão na tendência de queda dos últimos anos”, diz a especialista.
A médica Eliana Bicudo, assessora da Sociedade Brasileira de Infectologia, diz que a situação da vacinação está melhorando, mas ainda está longe do ideal.
“Ainda não podemos colocar a cabeça no travesseiro e ficarmos despreocupados com o sarampo. Se fizermos isso, esse surto na Europa nos pegará de calças curtas”, alerta a infectologista.
Um novo certificado de eliminação do sarampo?
O fato de o Brasil estar há mais de um ano sem novos casos de sarampo reacendeu as esperanças de o país ser declarado novamente como um território livre desse vírus.
O próprio diretor da Opas, o médico brasileiro Jarbas Barbosa, falou sobre o assunto em uma palestra no Rio de Janeiro em dezembro do ano passado.
“O Brasil já se encontra há um ano sem nenhum caso novo diagnosticado, o que nos permite também ter uma esperança muito grande de que, nos próximos meses, a comissão de verificação possa certificar novamente o país”, disse.
Mas Levi lembra que ficar um tempo sem registrar novas infecções não é o único fator decisivo para tornar-se um território livre do sarampo.
“É importante uma homogeneidade na vacinação, ou seja, ter todas as regiões do país com um índice alto de imunizados, sem muitas diferenças nesse percentual de lugar para lugar”, destaca a médica.
A presidente da SBIm também destaca a necessidade de um sistema de vigilância ativo, capaz de detectar rapidamente pacientes com o vírus que cheguem ao país por portos, aeroportos e fronteiras.
Um exemplo prático desse tipo de ação aconteceu recentemente: no dia 26 de dezembro, um menino de 3 anos veio com a família ao Brasil a partir do Paquistão.
Ele começou a apresentar alguns sintomas e foi atendido em uma unidade de saúde de Porto Alegre no dia 2 de janeiro, quando já foi colocado em isolamento. Os exames confirmaram que ele estava com sarampo.
Casos importados de outros lugares, como este episódio do garoto vindo do Paquistão, não são contabilizados como infecções locais, ocorridas no Brasil — mas acendem um sinal de alerta.
E há todo um protocolo — que envolve fazer a detecção precoce do sarampo, isolar o paciente, vacinar as pessoas que tiveram contato com ele e fazer um acompanhamento da saúde dos envolvidos — para evitar que a doença se espalhe e gere uma nova onda de transmissões.
“E precisamos ter todo esse sistema bem estruturado para sermos novamente um país que eliminou o sarampo”, reforça Levi.
O cenário instável do sarampo em outras partes do mundo fez a Opas soar o alarme na última semana.
A entidade pediu que todos os países das Américas “intensifiquem as atividades de vacinação, vigilância epidemiológica e preparação de resposta rápida para possíveis surtos”.
Uma doença altamente contagiosa
Bicudo explica que o sarampo é uma infecção causada por um vírus, que é transmitido de uma pessoa para outra pelas vias aéreas (por meio de tosse, espirro e coriza) ou pelo contato com superfícies contaminadas.
Esse agente microscópico tem uma alta capacidade de contágio. Estima-se que alguém infectado possa transmitir sarampo para outras 12 ou 18 pessoas.
“O sarampo causa um comprometimento das vias aéreas, com sintomas de febre, dor no corpo, dor de cabeça, congestão nasal, manchas na pele, lacrimejamento, tosse, conjuntivite e otite”, lista Bicudo.
“Em situações mais graves, ele pode levar a uma pneumonia ou até a uma meningoencefalite (uma infecção no sistema nervoso central), especialmente em pacientes mais vulneráveis.”
Esses casos são preocupantes e, sem os cuidados necessários, podem levar à morte.
Não existe um tratamento específico contra o sarampo. Os médicos prescrevem remédios para aliviar os incômodos e dar suporte à vida nos casos mais graves.
A principal forma de ficar protegido contra este vírus é a vacina.
No Brasil, o Ministério da Saúde e a SBIm preconizam um esquema de duas doses.
A primeira deve ser feita aos 12 meses de vida e utiliza a tríplice viral, um imunizante que protege não apenas contra o sarampo, mas também contra a caxumba e a rubéola.
A segunda é realizada 90 dias depois, quando a criança completa 15 meses e recebe a tetraviral (que resguarda contra sarampo, caxumba, rubéola e varicela).
Para aqueles que perderam esse prazo, não há problemas: é possível tomar essas vacinas em qualquer momento da vida.
Até os 29 anos de idade, a recomendação é seguir o esquema de duas doses. Entre os 30 e os 59 anos, as autoridades em saúde indicam a aplicação de apenas uma dose da tríplice viral.
A vacina está disponível na rede pública e não há necessidade de reforços: quem tomou duas doses após completar 1 ano de idade está protegido pelo resto da vida.
A alta capacidade de contágio do sarampo demanda que boa parte da população seja vacinada para criar uma imunidade de rebanho, em que todos ficam protegidos de um surto ou uma epidemia.
“É necessário que 95% das pessoas estejam vacinadas para garantir que aquela população fique realmente protegida desse vírus”, reforça Bicudo.