À frente da Secretaria Municipal da Fazenda desde 2021, Giovanna Victer assegurou em entrevista a Divo Araújo, do jornal A Tarde, que as finanças da capital baiana nunca estiveram tão sólidas. Segundo ela, isso é comprovado tanto pelos investimentos realizados na infraestrutura da cidade nos últimos anos quanto pela capacidade de endividamento da administração municipal.
“Salvador está sempre sendo citada, no Brasil, como um exemplo de robustez na área de investimento”, afirma a secretária nesta entrevista exclusiva ao jornal. Outro indicativo do equilíbrio financeiro da cidade, segundo ela, é sua capacidade de pagamento, reconhecida pela Secretaria do Tesouro Nacional com a nota A+, o mais alto grau de avaliação. “Nunca na história de Salvador tivemos esse grau A+”, acrescenta.
Na conversa, a secretária aborda ainda temas como a Reforma Tributária e o impacto das medidas fiscais nos municípios. Confira a entrevista completa a seguir.
Começo a entrevista abordando um assunto atual, que são as medidas fiscais anunciadas pelo governo federal, junto com a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil. Qual será o impacto dessas medidas para as finanças dos municípios brasileiros?
O governo federal decidiu anunciar a isenção do imposto de renda para contribuintes que recebem até R$ 5 mil por mês e estamos confiantes de que ele está tratando da parcela federal. Porque nós fazemos a retenção do imposto de renda dos nossos funcionários que recebem até R$ 5 mil. Esses recursos ficam para a prefeitura. E vamos continuar fazendo essa retenção. Nós imaginamos que essa será a regulamentação. A União certamente não teria divulgado uma redução do imposto de renda que comprometesse, segundo os cálculos da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), mais de R$ 10 bilhões das receitas dos municípios brasileiros. Em Salvador, a gente imagina que isso representa aproximadamente R$ 100 milhões por ano. É um dinheiro significativo. Estamos acompanhando, mas ainda não há detalhamento de que forma essa isenção vai ocorrer. Isso só acontecerá provavelmente a partir de 2026. Mas, quando começar a acontecer, realmente nós queremos ter garantidas as receitas municipais. Porque os municípios podem se comprometer de duas formas. A primeira, como disse, é em relação ao imposto de renda retido na fonte dos seus funcionários que recebem até R$ 5 mil. Só esse grupo já traz um prejuízo grande para os municípios. O outro prejuízo possível é no repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que também conta com uma importante parcela do imposto de renda. A gente tem ainda dúvidas se a União vai conseguir compensar esses recursos cobrando de quem ganha acima dos R$ 50 mil. Até porque quem ganha mais do que R$ 50 mil não tem contracheque. São outros tipos de formas de fazer o recolhimento do imposto de renda. E é muito mais difícil tributar quem ganha mais de R$ 50 mil. Nós estamos atentos e muito preocupados em haver um comprometimento das receitas dos municípios. Em 2022, nós já tivemos aqui o impacto, quando houve a alteração das regras do ICMS. A União alterou as regras do ICMS, impactou os estados e consequentemente os municípios. O que aconteceu? No ano seguinte, a União teve que compensar estados e municípios. É preciso ter detalhes, cuidado para que o pacote fiscal anunciado pelo governo federal não venha depois acabar criando mais um passivo fiscal para o próprio governo. Foi o que aconteceu em 2023, quando a União teve que compensar as modificações feitas no ICMS.
Outro tema factual que eu queria tratar é a Reforma Tributária, que está sendo votada no Congresso. A reforma une o ICMS e o ISS em um imposto único, o IBS, que será gerido por um comitê. Como a senhora enxerga a participação dos municípios na repartição do imposto?
O IBS é um avanço do ponto de vista institucional para o Brasil. A gente vê com bons olhos a simplificação – apesar de, no momento da implantação, você ter um pouco de distúrbios mesmo pela mudança. É uma fase complexa, vai ter uma transição de cinco anos, em que o novo imposto vai conviver com os antigos. Mas é claro que, passado esse primeiro momento, a expectativa é que, realmente, você torne o país mais competitivo, melhore a nossa produtividade, diminua a guerra fiscal. Que realmente torne o nosso sistema menos complexo. Então, a reforma tributária é vista de uma forma positiva. Entretanto, ela traz, sim, desafios de governança, como esse que você se refere, que é a gestão da redistribuição dos recursos. Será instituído um comitê gestor, no qual terão representação de 27 estados e 27 municípios. Já daí, a gente percebe que não será uma representação tão paritária. Isso, em si, já é um desafio de representatividade, porque nós temos mais de 5.500 municípios no Brasil. Desses 27 representantes, 13 serão escolhidos a partir da população e os outros 14 serão indicados pelo grupo total dos municípios. Já há aí uma dificuldade, porque realmente são entes muito diferentes. Em municípios pequenos, de até 30 mil, 50 mil habitantes, eles basicamente se sustentam com os recursos das transferências constitucionais e voluntárias. Principalmente, o Fundo de Participação dos Municípios e as cotas do ICMS. Já os municípios médios e grandes têm alguma atividade econômica e têm condição de estabelecer uma arrecadação mais estruturada. São visões diferentes, são backgrounds diferentes. Nós temos, sim, uma preocupação em relação à governança do Conselho Gestor. Mas, segundo a gente vem acompanhando, será um mecanismo muito automatizado da redistribuição e da própria cobrança do IBS. Nós teremos um sistema muito sofisticado. Se nós conseguirmos desenvolver esse sistema no âmbito de estados e municípios e implementá-lo no país todo, haverá pouca margem de discricionariedade para essa redistribuição. A nossa expectativa é que seja um sistema parecido com o CPMF. Lembra quando a gente pagava CPMF e já descontava toda a operação bancária? O objetivo é que seja alguma coisa parecida com isso. Que a cada operação já se abata ali o que tiver para abater de impostos na cadeia, para que não haja cumulatividade. Para que o próprio contribuinte tenha bastante clareza na cobrança por fora de quanto está pagando de imposto ali. É um desafio importante a governança do IBS, a redistribuição dos recursos, mas a expectativa é que haja muita tecnologia envolvida, muitos sistemas e que, a partir deles, a gente consiga efetivamente ter uma justiça na distribuição, uma previsibilidade e uma transparência bem feita na distribuição desses recursos.
A reforma acaba com a flexibilidade dos municípios com o ISS, cuja alíquota varia de 2% a 5%. Os municípios acabam usando essa margem para atrair empresas que tenham mais afinidade. Afinal, o fim dessa flexibilidade é positivo ou negativo?
É claro que a autonomia dos municípios está no DNA da nossa Constituição. Esse foi o grande questionamento da Reforma Tributária. Quais serão os reflexos para o pacto federativo? Esse debate foi feito no momento dessa escolha de se fazer o IBS. Que, na verdade, é um imposto dual- você tem o CBS e tem o IBS. Mas esse debate foi feito e a conclusão que a sociedade tomou foi essa. Simplificar a sinalização para o setor privado de quanto ele pagaria de impostos quando fosse vender ou comprar insumo em qualquer lugar do país. Essa decisão realmente muda um pouco a visão federativa brasileira. Mas, por outro lado, torna mais transparente o sistema tributário. Os municípios perderão essa flexibilidade a partir de 2033, quando será definitivamente implantada a reforma. Por outro lado, a sociedade ganha com a previsibilidade, transparência e simplificação. Agora o nosso desafio é implementar isso de forma que a distribuição seja justa e que nós não tenhamos nenhum comprometimento na receita e consequentemente na possibilidade de arcar com os nossos compromissos com a sociedade.
Como presidente reeleita do Fórum de Secretários de Fazenda e Finanças da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), a senhora participou ativamente das discussões em torno da Reforma Tributária?
A Frente Nacional reúne os prefeitos de cidades acima de 80 mil habitantes. Inclusive o prefeito Bruno Reis é vice-presidente da área de concessões e parcerias. Existe um grupo de secretários de Fazenda que é composto por essas cidades. A gente fundou esse fórum e nós prestamos toda a fundamentação técnica de discussão, de formação, de posicionamento. Nós também fomentamos o grupo de secretários com informações, análises de economistas. Trazemos a possibilidade de informações sobre projetos de lei que estão tramitando no Congresso Nacional em relação aos temas afetos às finanças municipais. É um trabalho de coordenação, de liderança, de rede, mas sobretudo um trabalho técnico de apoio aos prefeitos das médias e grandes cidades.
Falando em ISS, a Câmara Municipal aprovou, em outubro, um projeto da Prefeitura que aumentou a alíquota para a área de saúde. O índice aprovado foi de 3%, o que provocou muitas queixas de entidades representativas dos hospitais e médicos, como o Cremeb. O que justificou esse reajuste?
Na verdade, o imposto do ISS tem alíquota de 5%. O que os municípios podem fazer é reduzir para até 2%. Nós aqui reduzimos a 2% e, com essa mudança, passamos a reduzir para 3%. Por que isso é importante? Os anos que nós estamos vivendo são os anos que serão a base dos cálculos daquilo que a gente chama de piso de repasse do IBS para quando ele for implantado. Ou seja, a partir de 2033, a gente não pode receber menos IBS do que recolheu de ISS e ICMS nesse período. Nós estamos formando o nosso piso. Qual é o nosso desafio agora? É garantir uma receita robusta de ISS para que, nos próximos 40 anos, que é o prazo da transição da origem para o destino na implantação do IBS, a gente não receba poucos recursos. Para que a gente receba o recurso compatível com a necessidade da cidade e com o quanto o ISS vem crescendo nos últimos 10 anos. O que nós estamos fazendo agora, apesar do custo político que a gente reconhece, é garantir um futuro para a cidade. É garantir uma sustentabilidade de receita para quando o IBS começar a ser redistribuído.
A senhora participou recentemente de uma reunião das principais cidades do mundo com foco nas mudanças climáticas, a U20. As cidades também precisam estar preparadas financeiramente para a ocorrência de eventos climáticos extremos?
Esse é o grande desafio. Por quê? Nós estamos hoje sob risco do impacto de eventos climáticos extremos. Todas as cidades do mundo, especialmente as que estão no Hemisfério Sul. Pelas características das mudanças climáticas, as cidades que estão ao sul do Equador estão mais suscetíveis a esses eventos extremos. As cidades costeiras estão mais ainda. Nós estamos o tempo todo preocupados como vamos financiar tanto as atividades de redução de emissão de gases, que podem aumentar a temperatura global, quanto mitigar os efeitos das mudanças climáticas. A mitigação são obras, como, por exemplo, obras de drenagem, de contenção de encostas, demolições. Isso tudo é um recurso que vai além daquele que nós tínhamos previsto originalmente. E, às vezes, eles são extraordinários. Eles são imprevisíveis, digamos assim. Olhe o que aconteceu em Porto Alegre. O que nós precisamos agora refletir, e era isso que nós estávamos conversando nessa reunião do U20, é de que forma nós vamos constituir fundos ou normas fiscais mais flexíveis para que a gente possa incorporar esses impactos nas nossas finanças não planejáveis. Podemos ter fundos de estabilização ou podemos ter algumas exceções em regras fiscais, excepcionalmente como está acontecendo no Rio Grande do Sul. Eles estão tendo algumas exceções para tomar financiamento porque não teriam condições em normais de temperatura e pressão de tomar o tamanho de financiamento que estão tomando para reconstrução. Mas como foi o resultado de um fenômeno climático extremo, os bancos internacionais e nacionais estão abrindo exceções para isso. O que nós estamos estudando é quais serão as flexibilidades de regras fiscais? Quais serão os fundos que nós teremos disponibilidade? O quão flexíveis serão esses fundos para o acesso ao financiamento? Realmente, essa é uma imposição de uma agenda para a gente muito estratégica e delicada no caso de Salvador.
É uma discussão que está bem no início ainda. A senhora está otimista?
Eu acho que os bancos terão que, em algum momento, refletir sobre a flexibilidade para esse tipo de financiamento. Nós teremos que ser mais cautelosos com a nossa política fiscal também. Teremos que ser, eu diria, mais conservadores para um momento inesperado. Nós temos aqui condições de arcar com as nossas necessidades. É uma série de medidas que nós não podemos depender só da decisão de instituições financeiras. Nós também temos que ser cuidadosos, como já somos, ainda mais com relação à nossa política fiscal do município.
Nos últimos quatro anos, o setor de serviços em Salvador cresceu 40%, sem considerar a inflação do período. O que explica esse aumento significativo?
É a pujança da nossa arrecadação. É a pujança do setor econômico. A gente percebe o setor de serviços respondendo muito bem, tanto nas áreas de educação, saúde, como no turismo, que tem realmente batido recordes ano a ano. Isso é consequência de políticas públicas. É muito importante dizer que nós estamos trabalhando com capacitação de pessoas, tanto para o setor de serviços, como saúde, por exemplo. Estamos capacitando as pessoas na área de turismo. Estamos vendendo a cidade internacionalmente. Todos esses investimentos na infraestrutura da orla, de avenidas, isso também muda completamente a visão da pessoa que vem de fora positivamente para a nossa cidade. Enfim, isso é resultado de projeto, de política pública, de decisão de onde a gente fez os investimentos. A cidade investiu R$ 5 bilhões nesses últimos quatro anos. É um investimento exemplar para o país. Salvador está sempre sendo citada, no Brasil, como um exemplo de robustez na área de investimento. Nós investimos, o setor privado responde a isso, trazendo negócios, aquecendo a economia. E assim a gente consegue gerar um ciclo virtuoso, trazendo para a cidade emprego, desenvolvimento, oportunidades e rendas para as pessoas. Nosso grupo do prefeito Bruno Reis, notadamente, está no DNA do prefeito, o desenvolvimento. Ele sempre fala: a principal política social que existe é o emprego. É o que dá autonomia às pessoas, independência, sustentabilidade para as famílias. O que a gente faz aqui é direcionar os nossos esforços, os nossos trabalhos, as nossas políticas, para garantir que esses empregos sejam gerados de forma sustentável pelo setor privado, com os investimentos que nós estamos fazendo.
A senhora falou em investimentos, e a gente sabe que boa parte deles é fruto de operações de crédito. Qual é o nível de endividamento de Salvador em relação às outras capitais?
O nosso nível de endividamento é muito equilibrado. Nós teríamos margens para um endividamento ainda maior, mas dentro de uma atividade de planejamento. Não existe nenhum comprometimento receita, de longo prazo, nada disso. O que se tem é uma receita equilibrada, uma margem importante de poupança corrente que garanta uma liquidez e, dessa forma, a gente consegue se endividar. Na verdade, aqui a gente tem que conter os bancos. Porque os bancos nos procuram o tempo todo para emprestar cada vez mais. Porque reconhecem nossa saúde financeira. Sabem que nós temos a chamada capacidade de pagamento, reconhecida pela Secretaria do Tesouro Nacional como A+, que é o grau mais alto. Nunca na história de Salvador teve esse grau A+. Então, na verdade, o que a gente tem que fazer aqui é segurar os bancos, porque nós temos uma condição muito confortável ainda de endividamento. Em relação às outras capitais, Salvador também está muito bem.
Salvador é uma cidade vocacionada para a área de serviços. As grandes indústrias estão nos municípios do entorno, na RMS. A indústria logística, com centros de distribuição vinculados principalmente ao porto, é um caminho para incrementar a economia da cidade? Qual seria o outro caminho para fortalecer a atividade industrial?
Nós temos alguns vetores de crescimento que estamos identificando. Um deles é o setor náutico, que a gente considera um vetor importante, conversa com a Baía de Todos-os-Santos. Nós temos algum setor também na área de economia criativa, como, por exemplo, cinema, pólos de cinema. Então, estamos identificando, sim, algumas áreas como essas. E o setor de logística é uma delas. Tanto para a parte de diálogo com o porto, com retroárea, quanto com a de galpões de distribuição de última milha que também tem sido um potencial importante aqui. Nós já temos grandes empreendimentos lançados. Tivemos um grande no segundo semestre deste ano. Vamos ter outro ainda esse ano. Então, são, sim, motores importantes que geram, além de emprego, também movimento de serviços. Também temos receitas de serviços. Além de garantir para a população, esses da última milha, uma comodidade, um conforto, uma integração, digamos assim. Especialmente no comércio eletrônico. Mas a parte de porto e retroárea também. Esses galpões têm um diálogo importante com o porto, que está se ampliando, que está crescendo. E nós vemos, sim, essa atividade como um grande potencial aqui econômico para Salvador.
Para concluir, Salvador é uma das 12 maiores em atividade econômica no Brasil atualmente. A senhora está satisfeita com essa posição? Acredita que podemos crescer ao ponto de retomar a liderança de Fortaleza entre as capitais nordestinas com maior PIB?
As atividades são muito próximas. E, mal ou bem, Salvador tem uma característica tanto geográfica, de ser já muito adensada, com uma restrição de áreas para implantação de grandes indústrias. Nesse caso, acho que existem outras capitais do Nordeste que ainda têm mais disponibilidade de áreas. Inclusive por causa de questões topográficas mais, digamos assim, confortáveis, mais planas. Agora, Salvador, nós temos sim condição de atrair mais empresas. Empresas que trabalhem com energia limpa, com tecnologia. E por quê? Possui muito valor agregado e nós temos condições de fortalecer o nosso PIB aqui internamente. O nosso objetivo é continuar crescendo e, sobretudo, fortalecendo o emprego de qualidade, com empresas que tenham um valor agregado importante.
Raio-X
A secretária da Fazenda de Salvador, Giovanna Victer, é formada em Ciência Política pela Universidade de Brasília e possui mestrado em Políticas Sociais e Planejamento para Países em Desenvolvimento pela London School of Economics. Antes de assumir o cargo em Salvador, foi secretária da Fazenda, em Niterói (RJ).Em 2023, foi reeleita presidente do Fórum Nacional de Secretários de Fazenda e Finanças da Frente Nacional de Prefeitos (FNP). Giovanna também atuou na Secretaria Executiva do Ministério das Cidades durante a implantação dos programas “Aceleração do Crescimento” e “Minha Casa, Minha Vida”.