Politicamente, a saída de Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores pode acalmar os ânimos entre o governo Bolsonaro e o Congresso. Mas, para diplomatas brasileiros, caso o presidente Jair Bolsonaro aceite seu pedido de demissão, este será o primeiro passo de um longo caminho para consertar problemas criados em seus dois anos à frente do Itamaraty.
O jornal O Globo ouviu 11 diplomatas da ativa que servem em diferentes países nas Américas, no Oriente Médio e na Ásia sobre o legado de Araújo. Na avaliação deles, será necessária uma reconstrução completa da política externa do país, tanto das relações bilaterais com parceiros importantes, como EUA, China e Argentina, quanto com a União Europeia e organismos multilaterais.
Para um embaixador — que, como os demais ouvidos, falou sob anonimato devido à hierarquia rígida do Itamaraty e ao temor de represálias — sob a gestão de Araújo “o Brasil deixou de ser um parceiro confiável”, ao mudar posições tradicionais da diplomacia brasileira sem propor políticas claras em seu lugar.
Se no Senado a disputa gira em torno da suposta inoperância do Itamaraty na compra de vacinas e insumos para imunizantes, entre os diplomatas o que mais impacta “é o conjunto da obra” de Araújo. Embora a troca, se confrimada, possa ter simbolismo forte, dizem, ela não é suficiente para gerar uma mudança de percepção em relação ao Brasil.
Isso decorre de posições como ser contra a quebra de patente de vacinas — defendida por indianos e africanos na Organização Mundial do Comércio (OMC) —; sugerir a mudança da embaixada em Israel para Jerusalém, o que desagrada países árabes; escancarar preferências político-partidárias que foram derrotadas em eleições nos EUA e na Argentina; questionar a ciência sobre as mudanças climáticas e relativizar as posições sobre meio ambiente, o que provocou choque com os europeus; alinhar-se aos EUA de Trump para eleger o primeiro não latino-americano para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); e imprimir uma carga ideológica à relação com os chineses, o maior parceiro comercial do Brasil.
Como resumiu uma embaixadora da ativa, “Jair Bolsonaro prometeu uma diplomacia sem ideologia e, com Ernesto Araújo, entregou ideologia sem diplomacia”. Isso, segundo ela, “não é simples de ser alterado, sua substituição não resolve os problemas automaticamente”.
Um dos diplomatas ouvidos comentou a campanha do Brasil para voltar neste ano a ser eleito membro não permanente do Conselho de Segurança, depois de um hiato de 10 anos. Embora seja provável que o país alcance o número de votos necessários para isso, dado o seu peso regional, ele relata que, diante das críticas de Araújo ao chamado “globalismo” — representado justamente pelas instituições multilaterais —, a reação dos interlocutores estrangeiros é: “Vocês acham mesmo que têm condições?”
Os diplomatas citaram derrotas recentes do Brasil em eleições para organismos internacionais como sinal de perda de força do país. Em fevereiro, o colombiano Juan Carlos Salazar foi eleito o novo secretário-geral da Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci), contra a candidatura do brigadeiro brasileiro Ary Rodrigues Bertolino, que nem sequer foi para o segundo turno. No fim de 2020, a desembargadora Mônica Sifuentes não conseguiu os votos suficientes para ser eleita juíza do Tribunal Penal Internacional, em Haia.
Relação conturbada com os EUA
Os entrevistados afirmaram que, embora o governo de Joe Biden não vá optar em um primeiro momento por retaliações diretas ao Brasil, a relação entre os dois governos tende a ser fria. A demora do Brasil em reconhecer a vitória de Biden e o endosso à falsa tese de que houve fraude na eleição em Donald Trump foi derrotado pesarão no relacionamento. Eles lembram que o próprio Araújo, a poucos dias da posse de Biden, sugeriu que a invasão do Congresso para impedir a homologação da vitória do democrata no Colégio Eleitoral foi obra de “infiltrados” — tese que na época circulou na extrema direita americana e que foi desmentida pelo FBI, a polícia federal dos EUA.
Como notou um dos diplomatas, “o posicionamento foi mais radical que o de muitos republicanos”. Em fevereiro, o senador democrata Bob Menendez, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, mandou carta ao governo brasileiro pedindo uma condenação explícita da invasão do Capitólio. A carta afirmava que o relacionamento com o Brasil sairá prejudicado se o governo brasileiro não condenar a “incitação à violência e os ataques contra a democracia americana”.
No caso da Argentina, a orientação do ministro à Embaixada do Brasil em Buenos Aires foi clara: evitar contatos com o então candidato da centro-esquerda Alberto Fernández, nas eleições de 2019. A ordem colocou o então embaixador em Buenos Aires, Sergio Danese, em uma saia justa. Criou-se um mal estar entre o diplomata e a campanha de Fernández que demorou mais de um ano para ser superado.
Além das articulações contra o regime de Nicolás Maduro na Venezuela, o chanceler nunca demonstrou interesse em cultivar o relacionamento com os demais países da América do Sul. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, exercer a liderança no entorno sul-americano, mediando crises e articulando políticas comuns, era uma ambição e um objetivo do Brasil. Como disse um dos embaixadores, “ignorar a política sul-americana é absurdo, a menos que exista a possibilidade de mudar o Brasil de continente”.