No município catarinense de Anchieta (SC), onde moram quase 6 mil pessoas, a polarização política que divide o país há seis anos passa ao largo — ao menos até agora. Lá, os partidos de Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) não só convivem em harmonia, como compartilham o poder, ocupando as cadeiras de prefeito e vice, respectivamente.
A insólita aliança foi costurada nas eleições municipais de 2020, portanto antes de Bolsonaro se filiar ao PL. Naquele pleito, segundo levantamento de Bianca Gomes e Rafael Garcia, do O Globo, PT e PL fizeram parte da mesma coligação em 385 cidades, embora, em muitos casos, o prefeito eleito não fosse nem do PL nem do PT. A coalizão saiu vitoriosa em 213 municípios.
PT e PL concorreram juntos, na cabeça de chapa e na vice, em 27 cidades, saindo vitoriosos em 21 delas. No entanto, durante a janela partidária, período em que os políticos podem mudar de partido sem perder seus mandatos, algumas dessas alianças municipais se desfizeram.
O jornal O Globo apurou que em pelo menos sete municípios a dobradinha se manteve. São eles: Ararendá (CE), Barro Alto (BA), Piraúba (MG), Itaboraí (RJ), São Miguel da Boa Vista (SC), Trindade do Sul (RS) e Anchieta (SC). Nos três últimos, há conversas inclusive para renovar a aliança este ano.
O prefeito petista Ivan José Canci, de Anchieta, garante que a polarização política “passa longe” de seu município, embora reconheça a presença de algumas “goteiras”, termo que utiliza para se referir às cobranças de eleitores “apaixonados”.
— Existem, às vezes, questionamentos de pessoas mais exaltadas, mas a realidade do dia a dia se impõe e é em cima dela que nós trabalhamos. Não há muito espaço para a polarização num município pequeno quando quem governa se preocupa com o concreto. Lógico que existem diferenças (entre mim e o vice), mas elas não atrapalham o governo — diz Canci, que está em seu segundo mandato e trabalha pela manutenção da aliança entre os dois partidos.
O petista faz questão de ressaltar que o PL de Anchieta não segue os mesmos mandamentos da ala bolsonarista.
— O PL daqui não é o PL do Bolsonaro, dos radicais, da extrema direita. Tem uma relação mais próxima com os partidos de centro e esquerda — afirma ele.
Em Trindade do Sul (RS), a aproximadamente 180 quilômetros de Anchieta, o prefeito Segalla (PT) e seu vice, Tarcísio Rossatto (PL), precisaram se reunir para discutir os rumos da parceria quando Bolsonaro oficializou sua filiação ao PL, em novembro de 2021. Durante a conversa, decidiram que nenhum deles faria campanha nas ruas da cidade em favor dos respectivos presidenciáveis. A estratégia se mostrou eficaz, e a rivalidade entre os partidos não deixou sequelas na cidade, diz Segalla.
— Não tivemos eleição corpo a corpo para buscar voto (para Lula ou Bolsonaro). Nós nos respeitamos — conta Rossatto, que apesar de se definir como alguém “apartidário”, enfrentou pressões para adotar uma postura mais alinhada à direita. — A gente é questionado toda hora. A cobrança dos bolsonaristas é grande, se eu almejasse disputar a eleição este ano, teria que abraçar a causa — conclui ele.
O vice-prefeito do município gaúcho afirma que recebeu uma recomendação do diretório estadual do Rio Grande do Sul para que os pré-candidatos do partido não se coliguem com o PT no estado.
No ano passado, o Partido dos Trabalhadores aprovou uma resolução que abre brecha para alianças com o partido de Bolsonaro nas eleições de outubro, com veto somente a candidatos bolsonaristas. Em um documento divulgado, dirigentes petistas defendem a celebração de acordos com o PL nos municípios onde houver interesses convergentes.
Pouco tempo depois dessa decisão, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, foi às redes sociais dizer que não existe “nenhuma hipótese” de coligação com o PT. “Somos oposição e assim seguiremos”, escreveu Valdemar no “X”, o antigo Twitter.
Principal abrigo da direita e da extrema direita no país, o PL fez parte da base dos governos do PT e, na eleição presidencial de 2002, indicou José Alencar para ser vice de Lula. O partido que hoje tem Bolsonaro como seu principal representante, ocupou, além da vice-presidência, espaços de relevância nas gestões petistas, como o Ministério dos Transportes.
Nem sempre a paz reina nos municípios onde PT e PL seguiram governando juntos. Em Itaboraí, cidade com mais de 240 mil habitantes, a relação entre o prefeito Marcelo Delaroli (PL) e o vice Lourival Casula (PT) azedou durante a última eleição, e fez o prefeito demitir, de uma só vez, 30 servidores da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, então sob a liderança de Casula, que também foi dispensado do cargo.
O divórcio ocorreu em função de um desentendimento sobre a escolha do candidato a deputado estadual apoiado pela dupla. O prefeito lançou seu irmão, Guilherme Delaroli, que acabou sendo eleito para uma vaga na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), enquanto Casula apoiou Ricardo Geranius.
Apesar de a chapa ter sido formada antes da filiação de Bolsonaro ao PL, a aliança entre Delaroli e Casula já era considerada incomum. Isso porque Delaroli, naquela época, já era um fiel apoiador de Bolsonaro.
Quando concorreu com o apoio do PT em 2020, Delaroli havia feito as pazes com seus adversários em Maricá, município vizinho e maior fortaleza petista no estado. Depois de perder três eleições para prefeito naquela cidade para o PT, aliou-se à sigla e migrou para Itaboraí. Como nome de urna, a fim de se apresentar como representante da expansão das políticas sociais da cidade petista, escolheu “Marcelo Delaroli de Maricá”.
Hoje, prefeito e vice compartilham o poder rompidos e de lados opostos da política local. Os dois partidos devem, inclusive, se enfrentar na próxima eleição. Delaroli pretende buscar a reeleição no município, enquanto o PT planeja lançar a deputada estadual Zeidan como candidata.