Sabe-se hoje ter sido ilusionismo, uma farsa. Em outubro do ano passado, integrantes do governo de Nicolás Maduro e da oposição venezuelana sentaram-se diante do mar esmeralda de Barbados para um acordo democrático. Mediado por diplomatas da Noruega, ele garantiria respeito às regras nas eleições presidenciais de 2024. Quem vencesse levaria, em respeito à Constituição. Observadores estrangeiros zelariam pelas regras e pela paz. O presidente bolivariano prometeu andar na trilha do bom senso, mas não. Do tratado parece ter restado apenas a data do pleito, 28 de julho, que não por acaso é a do aniversário de Hugo Chávez, que em 2009 fez aprovar uma emenda constitucional para permitir reeleições ilimitadas. Ao morrer de câncer, em 2013, abriu-se a porta para seu vice, Maduro. Nas últimas semanas, o ditador tem exibido garras autoritárias com uma intenção evidente: permanecer mais um mandato — seria o terceiro — no Palácio de Miraflores.
O rol de irregularidades é imenso e não para. Uma condição fundamental para a lisura da votação seria o registro cuidadoso dos eleitores aptos a votar — desde 2005 o recenseamento está à deriva, um modo torto de garantir controle das urnas, evitando o crescimento da massa eleitoral que deseja o fim do “madurismo”. As irregularidades cometidas em processos anteriores são repetidas, e novas foram acrescentadas. “Teremos as eleições mais falhas em 25 anos”, diz Luís Lander, diretor do Observatório Eleitoral Venezuelano, um grupo independente. Como não há movimento forte de oposicionistas para boicotar a escolha — como aconteceu em 2018 —, o jogo sujo segue firme, em engrenagem avassaladora.
Apenas três meses depois do encontro em Barbados, o regime declarou a inelegibilidade de María Corina Machado, vencedora das primárias da oposição, acusada de ter cometido irregularidades administrativas, nunca comprovadas. “Foi uma decisão arbitrária”, disse ela a VEJA, em recente entrevista para as Páginas Amarelas. “Maduro controla todos os órgãos públicos.” Na conversa, ela intuiu o que viria a acontecer — e nem seria preciso bola de cristal. Um certo “conselho eleitoral”, cujo nome é uma contradição em termos, dominado por chavistas, impediu a candidatura de Corina Yoris, que ocuparia o lugar de María Corina. A alegação: a agremiação de Yoris está registrada como movimento político, não como partido. Até mesmo Lula, amigo de todas as horas de Maduro, sentiu cheiro ruim. “Primeiro, a decisão boa de a candidata proibida pela Justiça indicar uma sucessora. Achei um passo importante. Agora, é grave que a candidata (sucessora) não possa ter sido registrada.”
Na quinta-feira 20, deu-se uma outra invencionice: a divulgação de um documento pelo qual oito dos dez candidatos se comprometem a respeitar o resultado das eleições, visto como um subterfúgio para consolidar a vitória de Maduro, um dos signatários. O texto não foi endossado, é natural, por Edmundo González, diplomata de 74 anos, agora o principal candidato da oposição, que o descreveu como uma “imposição unilateral” e voltou a lançar dúvidas sobre a lisura do processo. Maduro reagiu: “O que quer que o juiz eleitoral diga, amém. Chega de sabotagem contra o nosso país, chega de conspirações. A Venezuela quer tranquilidade”.
Não é o que ele oferece. Com o crescimento de González nas pesquisas de intenção de voto — 30% de apoio, ante 25% do atual mandatário —, o ambiente está ainda mais cinzento, com cerceamento de um preceito seminal: a liberdade de imprensa. “Apesar de prometer igualdade de acesso aos meios de comunicação, o governo intensificou o cerco a veículos independentes, assim como o controle sobre os meios estatais”, diz Phil Gunson, analista do International Crisis Group. Busca-se abafar vozes contrárias e esconder o que é evidente: a miséria de um país em colapso econômico, com queda de 80% do PIB na última década e cerca de 7,7 milhões de refugiados, segundo a ONU. No Índice de Liberdade de Imprensa da ONG Repórteres sem Fronteiras, a Venezuela está na 156ª posição entre 180 países.
Na corda bamba, a caminho das eleições — ou do precipício —, brotam histórias de coragem. Duas irmãs, donas de restaurante em Corozo Pando, cidade da savana venezuelana, receberam a ex-candidata María Corina e a ela e sua equipe ofereceram empanadas quentinhas. A resposta de Maduro veio horas depois — o fechamento temporário do negócio, acusado de não estar em dia com impostos e alvarás. O episódio viralizou na internet, e as irmãs viraram símbolo de desafio contra o autoritarismo. Os quitutes, vendidos agora da porta para fora, foram rebatizados como “empanadas da liberdade”. Maduro não está nem aí, na sanha pelo poder. Ele prefere enfrentar os custos das sanções econômicas anunciadas pelos Estados Unidos, por desrespeito ao acordo de Barbados, a permitir que cidadãos livres comam pastéis.