Por detrás de uma porta no subsolo de um sobrado na antiga Ladeira da Praça, em Salvador, negros de origem nagô confabulavam, inicia texto João Pedro Pitombo, da Folha de S. Paulo. Que continua e diz que ao alvorecer de 25 de janeiro de 1835, um grupo de escravos e libertos confrontaria a ordem escravista e iniciaria um levante na capital baiana.
Mas uma delação alterou a rota dos revoltosos, que foram descobertos por uma patrulha que estava em busca dos amotinados. Ao forçarem a porta, os soldados foram surpreendidos por cerca de 70 homens que se lançaram ao confronto com lanças e vestindo túnicas brancas, os abadás.
A Revolta dos Malês, maior e mais importante levante urbano de escravizados do Brasil, completa 190 anos neste sábado (25) em meio a um esforço de resgate de sua memória e celebração do seu legado, que deixou marcas na Bahia.
A rebelião eclodiu no período regencial e questionou o regime escravocrata. Foi organizada por muçulmanos iorubás, vindos de regiões onde atualmente ficam a Nigéria e o Benin, na Bahia chamados de nagôs. O termo malê vem de imale, que significa muçulmano em iorubá.
Na época, Salvador tinha cerca de 65 mil habitantes, dos quais 42% eram negros escravizados. Os cativos tinham relativa autonomia e parte deles trabalhava nas ruas como ganhadores ou ganhadeiras (prestadores de serviço ou vendedores ambulantes). Os lucros eram partilhados com os seus senhores ao fim das empreitadas.
Eles se reuniam em associações chamadas cantos de trabalho, onde desenvolviam laços, que posteriormente se desdobraram em ações políticas.
“Esses grupos de trabalho foram essenciais na mobilização dos africanos para a revolta em 1835 e em outras ocasiões”, afirma o historiador João José Reis, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia), autor de “Rebelião Escrava no Brasil” e referência nos estudos sobre escravidão.
O levante reuniu cerca de 600 rebeldes. Depois do embate inicial, rumaram para a Câmara Municipal, onde funcionava a cadeia pública. Queriam libertar o líder malê Pacífico Licutan, preso em uma espécie de confisco de bens por dívidas de seu senhor.
O ataque foi retaliado por guardas do palácio do governo, e os rebeldes seguiram para as imediações do Campo Grande, onde receberam reforços. Cruzaram o centro da cidade sob fogo cruzado e rumaram para a Cidade Baixa.
A batalha final se deu na região de Água de Meninos, onde o levante foi sufocado deixando um saldo de 70 mortos entre os malês e cerca de dez entre as tropas governistas. Os demais rebeldes foram condenados a penas que incluíram prisão, açoites com até 1.200 chibatadas e deportação para a África.
Ao todo, 16 revoltosos receberam pena de morte. Quatro foram efetivamente mortos por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvora em 14 de maio de 1835. Dentre eles estavam o liberto Jorge da Cruz Barbosa, além dos cativos nagôs Gonçalo, Joaquim e Pedro.
Nos depoimentos, os réus foram questionados sobre o envolvimento com o islã, religião que, assim como os cultos de matriz africana, não era tolerada pelos donos do poder.
Nem todos os rebeldes eram muçulmanos, mas foram os malês os responsáveis por planejar o levante em reuniões que misturavam política e religiosidade, explica o historiador João José Reis.
“O próprio levante aconteceu no final do mês sagrado do Ramadã. Os malês foram às ruas com roupas islâmicas e amuletos protetores feitos de cópias de rezas, de passagens do Alcorão e outros escritos”, afirma.
A revolta foi o ápice de uma série de levantes negros registrados nas décadas anteriores. Seu desfecho foi noticiado em tom de preocupação em jornais pelo Brasil e em outros países, que temiam novas revoltas que levassem ao fim da escravidão, como a do Haiti.
A Revolta dos Malês deixou marcas na sociedade e vem sendo objeto de resgate por entidades como o Centro Cultural Islâmico da Bahia, que reúne muçulmanos de origem iorubá.
“Essa história é um orgulho para nós”, afirma o xeque Ahmad Abdul Hameed, líder do Centro Cultural Islâmico da Bahia. Ele explica que a religião islâmica não permite escravidão, o que teria dado força para que os malês se insurgissem: “Deus não criou ninguém para escravizar os outros”.
Desde 2022, a entidade se somou aos esforços de um grupo de pesquisadores que tenta repatriar um crânio que supostamente pertencia a um dos integrantes da revolta e está abrigado na Universidade Harvard.
Na Bahia, a presença dos malês deixou marcas em costumes, no vocabulário e na culinária, com pratos como o arroz de hauçá.
A história inspirou entidades carnavalescas como Malê Debalê, fundado em 1979 no bairro de Itapuã. Neste Carnaval, o bloco afro desfila com o tema “Com a pedra que Exu lançou, o Malê reconta a história. 190 anos depois, a revolta continua!”
A Ladeira da Praça, onde o motim foi iniciado em 1835, foi rebatizada de Ladeira Revolta dos Malês em iniciativa da vereadora Marta Rodrigues (PT) em 2022. A figura de Luiza Mahin, mãe do abolicionista Luiz Gama apontada como participante da revolta, embora não haja registro documental, se tornou um símbolo do feminismo negro.
Entidades do movimento negro se somam ao resgate histórico como símbolo da luta, resistência e memória, afirma Raimundo Bujão, presidente da Federação de Entidades Negras da Bahia.
“Se a gente não conta essa história, as pessoas vão achar natural que Salvador, com 80% de negros, viva essa desigualdade absurda. A desigualdade não é algo natural, tampouco resignação.”