Conforme a Folha de S. Paulo, os registros irregulares na identificação racial de políticos inflaram de maneira artificial a quantidade de negros entre os 513 membros da Câmara dos Deputados.
Segundo dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foram eleitos 124 deputados negros em 2018, classificação que inclui pretos e pardos. Levantamento da Folha, contudo, mostra que esse número é menor.
A reportagem procurou 38 deputados que se autodeclararam negros (como pretos ou pardos) mas que teriam dificuldade de passar por uma banca de heteroidentificação, como as que avaliam se uma pessoa pode se inscrever como cotista num vestibular.
Oito deles afirmaram que são brancos e que houve erro no registro da candidatura. Os demais não se manifestaram. Ou seja, de acordo com essas respostas, o total de negros diminui no mínimo para 116, mas pode cair pelo menos até 86.
Para o deputado federal Orlando Silva (PC do B-SP), que é negro, mesmo essa estimativa seria conservadora.
“Evidente que na Câmara dos Deputados não tem 124 negros”, afirma. “Na minha impressão de quem convive ali todo dia, pelo menos 70% [dos deputados registrados negros] não são.”
Se ele estiver certo, o total de pretos e pardos eleitos para a Câmara em 2018 cai dos 124 registrados no TSE para cerca de 35.
Essa disparidade entre a realidade e os dados oficiais existe porque a identificação racial ocorre por autodeclaração. Muitas vezes, contudo, o candidato não cuida da papelada para se registrar; isso fica a cargo da burocracia partidária, que pode cometer erros ao preencher a ficha no TSE.
A autodeclaração também abre espaço para fraudes em cima de ações afirmativas. A emenda à Constituição 111/2019 determina que, até 2030, os votos dados a candidatos negros deverão ser contados em dobro para fins de distribuição do fundo partidário e do fundo eleitoral.
“Pessoas podem se declarar negras para receber recursos de campanha. São recursos públicos e, neste caso, vão estar sendo mal distribuídos se a gente não pensar em coibir essas fraudes”, afirma Sabrina de Paula Braga, mestre em direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
De acordo com Paulo Henrique dos Santos Lucon, professor da Faculdade de Direito da USP, a legislação prevê medidas contra a desonestidade na classificação racial.
“Se for verificado que um candidato, de maneira abusiva ou fraudulenta, se declarou como negro, os seus votos podem ser desconsiderados para fins de distribuição dos recursos do fundo partidário e do fundo eleitoral”, diz.
A questão, na prática, é conseguir comprovar a eventual fraude. O TSE diz que cabe à Justiça Eleitoral punir irregularidades e que a análise sobre a correta destinação dos recursos para candidaturas de pessoas negras é feita no momento da prestação de contas.
Especialistas ouvidos pela reportagem sugerem que a autodeclaração racial seja escrita de próprio punho, de modo a eliminar a terceirização da responsabilidade pelos erros.
Outra proposta é expor nos materiais de campanha (como santinhos e propaganda na TV) a informação sobre o estímulo a candidatos negros, para que o próprio eleitor ajude a denunciar fraudes.
Uma terceira medida seria a banca de heteroidentificação, mas pesa contra ela a dificuldade prática diante do tamanho da eleição no Brasil e do grande número de candidatos.
Distorções nas pesquisas raciais
O tamanho da fatia do fundo partidário e do fundo eleitoral não é o único problema decorrente de distorções na base do TSE. A repartição do dinheiro dentro das próprias agremiações termina afetada, já que a lei estabelece distribuição proporcional à quantidade de candidaturas de pessoas negras e brancas.
Além disso, os dados oficiais inflados afetam a percepção sobre a representatividade política de pessoas negras e atrapalham estudos sobre o tema, dando a impressão de que a correção dos desequilíbrios raciais avançou mais do que a realidade mostra.
“[O dado do TSE] é um documento oficial, pouco importa se foi o partido ou o candidato que fez o registro”, diz o deputado Orlando Silva. “No Brasil, o racismo é cromático. Quanto mais retinta for sua pele, mais duro é o racismo.”
Para Luiz Augusto Campos, coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), as distorções na declaração racial são muito nocivas.
“Prejudica toda a pesquisa acadêmica que existe sobre isso. A gente não consegue fazer um diagnóstico adequado da realidade. E prejudica todas as medidas que visam reduzir as desigualdades raciais na política, porque irão para quem não merece o benefício”, diz.
Um desses estudos é “Desigualdade Racial nas Eleições Brasileiras”, conduzido pelos economistas Sergio Firpo, Michael França, Alysson Portella e Rafael Tavares, pesquisadores do Núcleo de Estudos Raciais do Insper.
Os autores mostraram que o percentual de negros e de mulheres entre deputados é muito menor do que seu peso na população em todos os estados. Como eles trabalharam com os dados do TSE, a disparidade deve ser ainda maior.
“Mesmo com as limitações da base de dados, espera-se que a divulgação desses resultados contribua para que a sociedade comece a ter maior clareza da dimensão da falta de representatividade na nossa ‘democracia’ e como isso afeta suas vidas”, diz França, que também é colunista da Folha, assim como Firpo.