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segunda-feira 11 de dezembro de 2023 às 10:03h

Referendo sobre Essequibo: erro diplomático

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É óbvio que Maduro realizou o referendo sobre Essequibo pensando, essencialmente, na política interna da Venezuela e de olho nas eleições de 2024.

É possível, embora incerto, que ele colha algum dividendo político com essa iniciativa.

Afinal, a questão de Essequibo é amplamente mobilizadora, independentemente de filiações político-ideológicas.
Dizer que a questão de Essequibo é uma agenda de Maduro ou do chavismo seria a mesma coisa que afirmar que a questão das ilhas Malvinas é uma agenda do peronismo.

Na realidade, ambas são questões nacionais e suprapartidárias, que se arrastam há mais de 100 anos. São questões que perpassam quaisquer diferenças político-ideológicas internas.

Nos livros escolares argentinos, as ilhas Malvinas são assinaladas como território argentino.

Nos livros escolares da Venezuela, Essequibo era mostrado como uma zona venezuelana em disputa. Agora, é assinalado como território da Venezuela.

Portanto, pode ser que a consulta popular venha a gerar algum ganho eleitoral para Maduro.
Porém, do ponto de vista da política externa, não parece ter sido uma boa ideia.

A Venezuela tende a ficar isolada, na questão do Essequibo.

Além do apoio dos EUA, do Reino Unido, da Commomwealth e da União Europeia, entre outros, a Guiana deverá ter apoio da Comunidade do Caribe, cuja sede fica em Georgetown, capital da Guiana. Só com a Caricom, a Guiana tem 44% dos votos da OEA.

A China, embora tenha boas relações com a Venezuela, tem relações estreitas com a Guiana. Participa (com 25%) da exploração do petróleo na bacia de Stabroek e tem engatilhados e em andamento muitos projetos de investimentos na infraestrutura da Guiana. Esse país faz parte do cinturão da Nova Rota da Seda.

Entre países africanos, o pêndulo tende para a Guiana.

A Índia também deve apoiar a Guiana, já que cerca de 40% da população desse país é descendente de indianos.
Na América Latina, a maioria dos países não viu com agrado o plebiscito. Introduziu tensão desnecessária na região. Cuba, por exemplo, sempre teve boas relações com a Guiana, país que nasceu com uma plataforma política de esquerda.

A Rússia não deverá se envolver, pelo menos não de forma importante. Aliás, a porta-voz da chancelaria da Rússia, Maria Zakharova afirmou recentemente que:

“O plano das relações entre a Venezuela e a Guiana deve ser resolvido pautado na boa vizinhança, encontrando soluções pacíficas mutuamente aceitáveis, de acordo com o direito internacional e os acordos assinados entre as partes, bem como a legislação nacional vigente”.

Embora a nossa mídia corporativa venha amedrontando a população com uma possível guerra, até com eventual envolvimento da Rússia, essa é uma perspectiva extremamente remota.

Nem a Venezuela, economicamente ainda muito enfraquecida, nem a Rússia, envolvida profundamente na Ucrânia, têm condições de intervir em Essequibo.

Mesmo em termos militares, a Venezuela está também enfraquecida. Segundo o site Global Fire Power, as forças militares venezuelanas estão, atualmente (2023), em 52º lugar no mundo. Na América do Sul, estão abaixo do Brasil, Colômbia e Chile.

Ironicamente, essa mesma mídia não se preocupou com guerras e conflitos, quando o governo Bolsonaro rompeu relações com a Venezuela e apoiou as ameaças de Trump, inclusive militares, contra nosso vizinho.

Naquele governo, o Brasil chegou a tentar entrar na Venezuela à força, para levar “ajuda humanitária”.
A Embaixada da Venezuela em Brasília foi invadida por bolsonaristas e apoiadores de Guaidó, num incidente diplomático muito sério.

De qualquer forma, o plebiscito, para o Brasil, foi algo negativo, pois:

1- Tende a enfraquecer a integração regional e o protagonismo do Brasil no subcontinente.
2- Estimula o aprofundamento da presença dos EUA, inclusive militar, na região, como já está acontecendo.
3- Tende a internacionalizar uma disputa sul-americana.
4- Está sendo usado na disputa política interna brasileira, criando desgaste para o governo do Brasil.

Ao Brasil, que atualmente possui boas relações com ambos os vizinhos, interessa ter um entorno estável, próspero e, sobretudo, pacífico. Interessa que a controvérsia seja solucionada pela via das negociações.

Nesse sentido, não se deve estigmatizar a Guiana, como fazem alguns.

Com efeito, há aqueles que identificam os legítimos interesses da Guiana como se fossem meramente os interesses da ExxonMobil e do “imperialismo”. Como se a população da Guiana, que, como a população venezuelana, considera que Essequibo lhe pertence, não merecesse nenhuma consideração. Sequer existisse.

Isso revela ignorância e é algo profundamente ofensivo ao nosso vizinho, que tem uma bela história anticolonialista e de governos progressistas.

Poucos sabem, mas em 1953, bem antes de Allende, a então Guiana Inglesa elegeu pacificamente um governo local de tendência socialista. O governo de Cheddi Jagan, fundador do People´s Progressive Party (PPP) e filho de imigrantes indianos muito pobres, que trabalhavam nas plantações de cana-de-açúcar da Guiana.

O governo de Jagan logo tomou decisões que desagradaram o domínio colonial britânico e enfureceram Churchill.
Jagan encorajou uma greve contra a importante empresa açucareira Booker, recusou-se a enviar uma delegação para a coroação da Rainha Elizabeth II, rejeitou uma lei sobre “publicações indesejáveis” aprovada pelo governo colonial, e anulou outra lei que proibia a imigração de indivíduos de tendência política de esquerda das Índias Ocidentais.
O caldo entornou quando Jagan aprovou uma lei, o Labour Relations Act , a qual procurava assegurar liberdade de associação sindical e direitos trabalhistas para os trabalhadores da Guiana.

Foi o suficiente. De imediato, o governo de Londres, alarmado e suspeitando que Jagan era marxista/leninista, suspendeu a constituição local, e mandou fuzileiros galeses para a Guiana.

Jagan foi deposto e preso. Pediu a ajuda de Clement Attlee, do Partido Trabalhista inglês, o qual disse que não poderia intervir.

Assim, a primeira experiência socialista/trabalhista eleita pacificamente chegou ao fim.
Durou só 133 dias, mas deixou marcas.

A Guiana, embora dividida politicamente entre o PPP, partido predominante entre os descendentes de indianos, e o People’s National Congress, mais popular entre os descendentes de africanos, nasceu, como país independente, como a “República Cooperativa da Guiana”, nação empenhada em lutas por direitos sociais e trabalhistas, embora muito pobre.

Por isso, a Guiana sempre teve boas relações com países governados pela esquerda, até mesmo com a Venezuela de Chávez, que, em seu tempo, cooperou ativamente com Georgetown.

Quando Jagan governou a Guiana (1992-1997), ele defendeu uma Nova Ordem Global, baseada na erradicação da pobreza e na redução das desigualdades.

Isso envolveria o alívio da dívida dos países pobres, um imposto sobre a poluição e a emissão de gases, a implantação da Taxa Tobin sobre transações financeiras internacionais e cortes significativos nos gastos com armas.
Desse modo, apresentar a Guiana e sua população como vilãs, títeres de interesses de grandes companhias internacionais de petróleo e dos EUA é de um reducionismo crasso. É negar, a priori, qualquer legitimidade às reivindicações da Guiana.

A disputa por Essequibo é um resquício de lutas de sistemas coloniais. Mas não há superioridade moral de um colonialismo sobre outros. O colonialismo espanhol não foi superior ao colonialismo inglês ou ao colonialismo holandês. Todos eram igualmente opressivos.

Os mapas da Coroa Espanhola eram tão discutíveis quanto os mapas da Coroa Britânica. Esses mapas não foram feitos com a aprovação democrática das populações locais, muito menos as indígenas.

Ante o fracasso do Acordo de Genebra, de 1966, que não conseguiu apresentar resultado algum de negociações bilaterais, o Secretário-Geral da ONU, com a concordância da Guiana, apelou, em 2018, para os bons ofícios da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que já se declarou competente para decidir sobre o famigerado Laudo Arbitral de 1899, contestado pela Venezuela.

A questão é, portanto, muito mais complexa do que parece e não admite posições primárias e maniqueístas.
Independentemente da aceitação ou não dos ofícios da CIJ, o que deve ser evitado são ações unilaterais, que só agravam o conflito.

Dese o final do século XIX, o Brasil conseguiu resolver todas as suas questões fronteiriças pela via pacífica das negociações. É exemplo a ser seguido.

Por Marcelo Zero – Ele é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

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